A casa além-edificação sob uma abordagem semiótica
Autora
Débora Braga Araújo
Resumo
O presente trabalho analisa a relação entre o homem e a casa na medida em que esta, de projeto material, transforma-se em subjetividade ao longo da vivência no ambiente. O estudo perpassa pelos objetos de memória e suas representações, pela dinâmica dos cômodos, pelos espaços imateriais, pelas histórias pessoais e pelos laços afetivos estabelecidos. A contribuição aqui proposta problematiza especialmente a dicotomia entre edificação versus construção humana relacional e, para tanto, recorre à metodologia semiótica de C. S. Peirce que corrobora, elucida e substancia o tema. As semioses são pertinentes, para esse e quase todos os outros campos de estudo, ao promover reflexões mais cristalinas e permitir o processo de desvelamento, neste caso, das significações construídas no âmbito daquilo que entendemos por lar. O intuito é valer-se da teoria dos signos estabelecida por Peirce para compreender a esfera privada.
Palavras-chaves: casa, lar, objeto, semiótica, subjetividade.
Abstract
The present work analyzes the relationship between man and home as it, being a material project, becomes subjectivity throughout the experience in the environment. The analysis covers the objects of memory and their representations, the dynamics of the rooms, the immaterial spaces, the personal histories and the affective ties they have established. The contribution proposed here particularly problematizes the dichotomy between building construction versus relational human construction and, therefore, uses the semiotic conception of C. S. Peirce that corroborates, elucidates and substantiates the theme. Semioses are relevant for almost all fields of study. It promotes more crystalline reflections and allows the process of unveiling, in this case, the meanings constructed within what we mean by home. The purpose is to use Peirce’s theory of signs to understand the private sphere.
Keywords: house, home, object, semiotics, subjectivity.
1. Introdução
As ingerências da arquitetura, design de interiores, engenharia, dos projetos milimetricamente articulados, dos princípios de ergonomia, da linguagem das cores, da estética, da luminotécnica, da especificação dos materiais, do mobiliário, do paisagismo, das obras de arte, dos adornos e até mesmo da moda são fundamentais na busca pelo bem-estar e funcionalidade que a casa pode e deve proporcionar a quem nela habita.
Entretanto, a despeito do arcabouço de ferramentas que criam a materialidade do espaço, estão os fenômenos nascidos no cotidiano, nos relacionamentos desenvolvidos, nos aromas e sabores produzidos, nos objetos colecionados, nas experiências acumuladas. É neste universo além-edificação que repousa o lar, o lugar para o qual todos desejam voltar.
A sensação que se tem em um hotel luxuoso ilustra a importância do local onde se vive. No início, há o encantamento com os lençóis de inúmeros fios egípcios, a banheira espaçosa, o café da manhã variado, o aromatizante refinado, a vista privilegiada.
No entanto, ao passar dos dias, surge o desejo de usar a própria área de banho, de dormir no colchão que memorizou o formato do corpo, de ver a fotografia de família sobre a mesa de cabeceira, de preparar e comer o bolo que é receita da avó. Ou seja, emerge a necessidade de estar em casa.
É próprio do ser humano buscar um abrigo com o qual se identifique:
Um ninho seguro – Um espaço conhecido a nossa volta, onde sabemos que nossas coisas estão seguras e onde podemos nos concentrar sem sermos perturbados pelos outros é algo de que cada indivíduo precisa tanto quanto o grupo. Sem isso, não pode haver colaboração com os outros. Se você não tem um lugar que possa chamar de seu, você não sabe onde está. Não pode haver aventura sem uma base para onde retornar: todo mundo precisa de alguma espécie de ninho para pousar. (HERTZBERGER, 1999, p. 28).
A produção de significância ocorre na medida em que o morador, cotidianamente, dedica-se à composição e manutenção do espaço e nele passa a imprimir sua identidade e referências. Estar no próprio lar é estar em si. É estar situado. É sentir-se estável. É enxergar-se em cada elemento, seja este físico ou não. Para Nietzsche “só compreendemos um universo modelado por nós mesmos.” (MOLES, 1981, p. 7).
A imaterialidade que transforma a casa em lar encontra amparo na semiótica peirceana e, deste ponto, começaremos a entrelaçar conceitos semióticos com a ideia de lar e assim será ao longo trabalho.
Segundo Lúcia Santaella (1995, p. 19) semiótica “é a teoria lógica e social dos signos […] os quais são produzidos pelo pensamento”. Para signo, Peirce elaborou inúmeros conceitos a fim de que não restassem dúvidas. Neste sentido, Santaella[1] (apud Fisch, 1978. p. 55) destaca a preocupação do semioticista através do trecho de uma carta escrita por ele em 1908: “Minha definição de signo foi tão generalizada, que, ao fim e ao cabo, desesperei-me ao tentar fazê-la compreensível às pessoas. Assim, para me fazer entendido, agora a limitei.”
Júlio Pinto (1995, p.50) destaca dois dos mais conhecidos conceitos que Peirce elaborou para o signo:
[Signo é] algo que representa algo para alguém em algum aspecto ou capacidade. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente, ou talvez mais desenvolvido. A esse signo que ele cria dou o nome de interpretante do primeiro signo. O signo representa algo, seu objeto. (CP. 2.228) Grifo nosso.
[Um signo é] qualquer coisa que determine que uma outra coisa (seu interpretante) se refira a um objeto ao qual ele mesmo se refere do mesmo modo, o interpretante se tornando um signo, e assim por diante, ad infinitum. (CP. 2.303)
A fim de ilustrar que objetos geram signos diversos em um aspecto específico, uma pesquisa sobre as tipologias de abrigos improvisados pelos moradores de rua de Belo Horizonte/MG, descreve a estrutura de uma das casas visitadas:
As tábuas de madeira podem transformar-se em paredes, camas e prateleiras; as caixas de papelão maiores servem como armários e protegem a comida e as roupas dos ratos; um banco de carro pode tornar-se o sofá da casa, enfim, os materiais e objetos encontrados, ganhados ou trocados são reagrupados e, dessa operação, o resultado pode ser novos objetos ou mesmo a casa propriamente dita. (ARAÚJO, 2004, p. 273).
No caso apresentado, caixas de papelão, que para alguns seria o signo-lixo, para outros é o signo-armário.
Ou seja, uma pessoa identifica qualquer coisa, seja ela um cheiro, uma ideia, uma lembrança ou um artefato e transforma essa coisa em objeto único através do seu aparato cognitivo individualizado.
Aqui, vale ressaltar que o aparato cognitivo de cada sujeito varia de acordo com seu Umwelt, termo criado pelo biólogo Jakob Von Uexkull, e que consiste no ambiente próprio de percepção que cada espécie é capaz de notar através de sua amplitude sensória. O Umwelt sempre tem correspondência com a realidade e os humanos, em especial, têm a capacidade de criar signos complexos que burlam o reflexo do real. Neste sentido, Juliana de O. Rocha Pinto (2019, notas de aula) elucida que “é preciso ter um repertório para olhar os signos. Sem repertório o vemos, mas não o enxergamos”.
Voltando ao objeto, a mente o representa através de um signo. Por fim, dessa relação entre objeto e signo, surge um interpretante. Esse interpretante, que não se confunde com o intérprete, é autogerado pelo próprio signo e assim sucessivamente, sendo que o interpretante também é um signo que gerará outro interpretante rumo aos desvelamentos possíveis, à transparência do signo, ao infinito.
O tema em análise, qual seja casa/lar/subjetividade, se presta a exemplificar os três elementos que formam a tricotomia perfeita do signo: no campo da primeiridade podemos ter o signo-família, decorrente da segundidade objeto-casa, que resultam na terceiridade interpretante-lar. O lar, por sua vez, também se constitui signo, que pode ser decorrente do objeto-matrimônio e que juntos geram o interpretante-amor e assim por diante em via progressiva na direção do interpretante final.
Para encerrar esse panorama inicial a respeito da teoria peirceana dos signos, torna-se importante discorrer sobre as três categorias da experiência, segundo as ideias de Júlio Pinto (1995).
Para ele a primeiridade é ligada à qualidade e à sensação. É aquela que pode ser considerada em si mesma no momento pré-reflexivo. É mais ou menos um sentimento, uma ausência de análise, uma abstração pura. É emoção. Como exemplo é possível citar o cheiro do sabonete.
Já a secundidade é uma força bruta, é o que existe, é ação e reação, é instinto. Como exemplo nós podemos pensar no ato de pegar imediatamente o sabonete cheiroso que cai no chão no momento do banho.
Por fim, a terceiridade tem caráter de lei, de lógica, de relato. É a representação do que existe (secundidade) e do que é (primeiridade). Trata-se da semiose em sua completude. Como exemplo imagina-se o ato de refletir frente à prateleira do supermercado sobre qual sabonete deve-se comprar ao comparar preço, cheiro e qualidade.
Todos os outros desmembramentos semióticos estão inseridos em uma dessas categorias. Assim, através da semiótica, será possível verificar de forma lógica e racional os fenômenos que envolvem o lar.
[1] SANTAELLA, Lúcia. A teoria geral dos signos: semiose e autogeração. São Paulo: Editora Ática S.A, 1995, p. 22.
2. Casa: Subjetividade, singularidade e semiótica
A casa, nos moldes como nós a conhecemos, é invenção recente e faz-se necessária uma brevíssima uma incursão histórica a seu respeito.
Até o advento da era industrial e da classe burguesa no século XVIII, a casa era simultaneamente, local de trabalho, diversão e descanso. As famílias com muitos integrantes viviam em espaços sem qualquer setorização. As refeições eram realizadas no mesmo local de dormir que era também o espaço de conversar e produzir. O interesse público sobrepunha-se ao privado. A vida era exposta.
Entretanto, a industrialização transformava por completo o cenário socioeconômico do mundo. Neste momento, a burguesia passou a introduzir os conceitos de privacidade, identidade, distinção, distanciamento e proteção em relação à fábrica e à rua, esta, agora um sinônimo de perigo, mendicância e vadiagem. Era hora de recolher-se.
Pela primeira vez, o local em que vive o homem privado se contrapõe ao local de trabalho. Organiza-se no interior da moradia. O escritório é seu complemento. O homem privado, realista no escritório, quer que o interieur sustente as suas ilusões. Esta necessidade é tanto mais aguda quanto menos ele cogita estender os seus cálculos comerciais às suas reflexões sociais. Reprime ambas ao confirmar o seu pequeno mundo privado. Disso se origina as fantasmagorias do “interior”, da interioridade. Para o homem privado, o interior da residência representa o universo. Nele se reúne o longínquo e o pretérito. O seu salon é um camarote no teatro do mundo. Grifo nosso. (BENJAMIN, 1991, p. 37).
O domínio da esfera privada demandava a separação da casa em cômodos: o local de receber, descansar, acomodar os filhos, se alimentar, se higienizar, abrigar os empregados.
Além disso, havia a intenção de demonstrar a prosperidade recém-adquirida através de tecidos nobres, pratarias, porcelanas e toda a indumentária que compunha o novo modelo de casa. As residências também passavam a atuar no sentido de retirar dos olhos da esfera pública os hábitos, as filhas solteiras e os escândalos conjugais.
Enfim, o ato de morar nunca mais foi o mesmo. Ainda que algumas adaptações tenham sido realizadas com o surgimento de novos arranjos familiares e espaços cada vez mais reduzidos, o conceito da casa ocidental estabelecido àquela época ainda é o mais comum nos dias atuais, além de ser o responsável por ditar muitos dos nossos costumes.
O que hoje a sociedade moderna concebe em relação à casa, independente da sua infraestrutura, é que ela, enquanto lar, atua como uma defesa contra o mundo. É um refúgio no qual o sujeito pode expressar sua identidade e desfrutar da intimidade.
Na apresentação do livro A casa subjetiva, Jerusa Pires Ferreira define com maestria o fenômeno além-edificação:
A habitação, a casa, a moradia, a máquina de morar, muito mais que projeto e construção material é receptáculo de mitos, de práticas e de acontecimentos que, cotidianos, ganham às vezes outra dimensão no campo afetivo: sons, formas, volumes replicantes, que se perderiam de outro modo. (…) uma casa é muito mais que uma casa, é uma cosmologia e um encontro não fortuito, é a construção de um jogo de impulsos e de conhecimentos, rede de ícones vivificados, virtualidades que se articulam, circulação de afetos, medida no mundo. (BRANDÃO, 2002, p. XIII). Grifo nosso.
Sob o mesmo prisma, voltamos a nos recorrer à pesquisa sobre as tipologias de abrigos improvisados pelos moradores de rua de Belo Horizonte/MG, da qual extraímos dois depoimentos:
“Eu não acho que moro na rua. Morar na rua é assim, você não ter onde, um local fixo p’ra você ficar, certo?! Quer dizer, morar na rua p’ra mim significa assim, você pegar um saco, colocar nas costas e sair andando. Dorme numa praça, noutro dia dorme na porta de um boteco, na porta de uma loja, aí eu sei que é morar na rua. Agora embaixo do viaduto acho que desde que tem um barracãozinho nem que for de plástico, isso não é morar na rua. Você tá cuidando, é um lugarzinho ali que você não vai sair dali, não vai ficar batendo cabeça p’ra cima e p’ra baixo sem lugar de ficar. Isso não é morar na rua não.” (Bela, moradora do Viaduto da Avenida Silva Lobo sobre a Via Expressa). Grifo nosso. (ARAÚJO, 2004, p. 246)
“Maloca é o seguinte, as pessoas que mora assim debaixo do viaduto, tem assim um barraquinho de papelão, madeirite, ou até lona, (…) num é a gente que põe nome de maloca, pra nós é casa né?!” […] (Cirléia, moradora do viaduto da Avenida Amazonas sobre a Avenida Silva Lobo). Grifo nosso. (ARAÚJO, 2004, p. 279)
Além dos depoimentos, há descrições a partir das visitas às casas nas ruas que denotam os referenciais de conceitos genéricos daquilo que compõe um lar:
Em algumas casas as paredes são forradas com folhas de jornal ou revista e, por vezes, são pregados retratos, posters de filmes, de times de futebol, utilizados como objetos de decoração. […] Os ambientes internos geralmente são separados por cortinas. Quando a casa tem apenas um cômodo, essa porta de entrada é colocada em uma das paredes de forma a impedir a visibilidade total do ambiente possibilitando a privacidade dos moradores. […] Tanto o material utilizado para a construção das casas, como alguns dos objetos que compõem os ambientes internos e externos são, muitas vezes, obtidos na atividade da coleta de papel. Grifo nosso. (ARAÚJO, 2004, p. 271)
Paradoxalmente, outra pesquisa buscou entender diferentes arranjos domésticos encontrados na classe média alta de Curitiba/PR, da qual destacamos três depoimentos:
“Depois das seis, eu ligo para ele [o filho] da rua e eu falo: Olha, deixa a casa gostosa. Aí ele sabe o que é: acender os abajures. Eu detesto chegar em casa e estar com luz grande acesa, estar tudo escuro, sabe, eu acho assim baixo astral. […] Sabe os armários, fui eu que desenhei, pintei as panelas de cerâmica. Cerâmica, pedra e ferro, praticamente eu só uso elas. Fica uma delícia, né. Eu adoro cozinhar em panela de cerâmica.” (Tábata Isis, 48, artista-plástica, mora com o marido e os filhos). Grifo nosso. (GUIMARÃES, 2007, p. 179 e 231)
“Tem outros lugares da casa que eu gosto, mas o meu escritório, aqui, é o meu… a minha identidade profissional e pessoal também, né! Então a bagunça, que eu não consigo me organizar direito, ela faz parte também das coisas que eu tenho aqui!” (Pedro Afonso, 54, professor universitário, mora com esposa e filhos). (GUIMARÃES, 2007, p. 219)
“O banheiro. Acho ele bonitinho, acho ele aconchegante, pequenininho, agradável, acho que tem algumas coisas, gosto das fotos que tem ali. (Pâmela, 34, professora, companheira da Débora). Depois que eu arrumei o banheiro, eu fico mais tempo, assim, tomando banho, tranquila.” (Débora, 25, psicóloga, companheira da Pâmela). (GUIMARÃES, 2007, p. 239)
A análise das duas pesquisas, aqui representados pelos depoimentos, permite-nos perceber a relevância da construção diária de afeto e identificação com o lar, independente da origem, classe social e nível de escolaridade.
No cenário contemporâneo, na medida em que a violência assola as cidades e que nos centros urbanos somos muitos, porém estranhos uns aos outros, o amparo do lar torna-se mais necessário.
Interessante notar que o lar emana em sua atmosfera as peculiaridades e preferências dos moradores de modo que nenhuma casa é como a outra. Ainda que haja projetos semelhantes e prevalência de móveis e adornos da moda, cada indivíduo promove a sua intervenção e reflete nos ambientes traços da própria imagem.
A máxima segundo a qual “o projeto nunca é concluído” exprime a constante mutação do lar face às experiências de cada um. As flores que enfeitam a mesa mudam de cor de acordo com o humor de quem as compra. O quarto da criança recebe mais uma cama para o irmão que irá nascer, a cozinha ganha um novo acessório para trazer praticidade à rotina apressada. Cômodos podem ser ampliados, encurtados, eliminados e outros construídos, tudo a partir das novas dinâmicas promovidas pela vida.
Dia após dia, objeto após objeto, acontecimento após acontecimento, a singularidade instala-se e espelha com fidelidade seus habitantes. Há então um misto constante entre o material e imaterial.
Santaella (1995, p.11) bem lembra que o “[…] signo é sinônimo de vida. Onde houver vida haverá signos”. Diz ainda que “a vida tem vias de secreta sabedoria. Só as conhecemos se damos a ela, vida, a chance de manifestá-las”. E neste ritmo pulsante novos ecossistemas criam novas significações para o mesmo local.
Um incidente real é eficaz ao demonstrar a profunda relação do homem com o lar e a zona de sombreamento que existe entre eles:
[…] cheguei a minha casa no fim da tarde, depois do trabalho. Saindo da garagem, tirei imediatamente as sandálias: pisar no chão – sentir-me em casa. Mal aberta a porta joguei minhas coisas no sofá ao lado. Neste instante, algo me paralisou. Não reconheci a sala. Qualquer coisa estranha circulava. Alguns objetos estavam bizarramente fora do lugar. Só então me dei conta de que um ladrão invadiu minha casa. Aquelas coisas, ainda indispostas, não eram minhas, não as reconhecia. […] Os objetos não se conheciam, senão segundo um dado repertório de composição espacial. Grifo nosso. (BRANDÃO, 2002, p.66).
Ou seja, a agressiva mudança da disposição dos objetos por um estranho fez com que Brandão não reconhecesse sua própria casa, pois tudo só fazia sentido segundo a ordem estabelecida por ela.
Brandão (2002, p.15) ainda afirma que “o encontro da casa enquanto matéria com as pessoas que nela vivem geram subjetividade. Algo imaterial. Os homens produzem casas, mas as casas produzem homens.” De repente, já não é possível saber se o homem submete a casa ou é submetido por ela. O que há é um entrelaçar onde um torna-se reflexo do outro.
3. A necessidade humana de transformar objetos em signos
O homem relaciona-se com os objetos na medida em que sua função usual desaparece para dar lugar ao poder de guardar momentos, de contar histórias, de enfatizar personalidades, de compor coleções, de abrigar sentimentos. Tal poder ainda é manifesto na capacidade de traduzir costumes de uma época e denunciar o modo de vida de determinada sociedade.
Como na poesia de Manoel de Barros (1994, p.13):
Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.
A necessidade de cercar-nos de objetos é latente na medida em que estes no remetem a episódios marcantes, aos entes queridos, aos lugares percorridos.
Para Miller (2013, p.83) “[…] os objetos fazem as pessoas. Antes de realizarmos coisas, nós mesmos crescemos e amadurecemos a luz de coisas que nos foram transmitidas pelas gerações anteriores.”
Alguns objetos, de meros produtos merticanlizáveis desenvolvidos com prazo de desusança, adquirem significado para o sujeito. O que poderia ser usado, descartado e esquecido tem a possibilidade de perdurar no tempo ainda que não seja mais aproveitável na perspectiva funcional. Passam a ser vividos. Adentram o mundo imaterial. Segundo Baudrillard (2012, p.10), é necessário pensar sobre “as estruturas mentais que se misturam às estruturas funcionais e as contradizem.”
Freud, fundador da psicanálise, construiu um relacionamento profundo com antiguidades garimpadas cuidadosamente ao longo de sua vida. Linn Gamwell (1994)[2] relata em um ensaio que a coleção surgiu como uma forte reação à morte do pai e ao contexto antissemita em que estava inserido.
Além disso, o início do colecionismo de Freud coincidiu com uma fase de intenso isolamento profissional e por isso Gamwell (1994, p. 21) explica que ele “povoou seu estúdio com personificações de fragmentos mentais de um passado sepultado que ele procurava descobrir.”
Em carta a um amigo, o próprio Freud afirmou: “Decorei meu estúdio com cópias em gesso de estátuas florentinas. Elas são uma fonte de renovação e conforto excepcionais para mim.” (Gamwell, 1994, p. 25). Sua relação com os objetos era mais íntima que com as pessoas ao ponto do psicanalista ter escolhido morrer em seu local de trabalho na companhia das peças que o conheciam e o acolhiam.
A casa, concebida como lar, está permeada por objetos através dos quais as pessoas materializam suas histórias. Através deles, é possível fazer uma leitura bastante clara de quem os possui. Neste sentido:
Cada detalhe tem uma história, que é alguma coisa das viagens que eu fiz, ou são coisas que eu tenho que vieram da minha mãe. Ou são quadros da minha irmã ou do meu irmão. Cada detalhe tem uma questão afetiva, eu acho que é importante isso. As cadeiras foram as últimas coisas que eu trouxe para cá. As cadeiras eram da minha mãe, daí eu mesma lixei e coloquei o selador novo, e mandei recapar. […] Eu conservo essas coisas que foram feitas por ela, as coisas de crochê, o tapete da cozinha. (Cléo Sidarta, 42, prof. universitária, solteira, mora só). Grifo nosso. (GUIMARÃES, 2007, p. 182).
A cristaleira era da casa da minha avó. Lembra o aconchego que eu tinha na casa dela. (Tereza Cristina, 47, gerente de programação visual, mora com o marido e filhos). Grifo nosso. (GUIMARÃES, 2007, p.184).
Na copa eu acho que a família inteira se enxerga, porque a casa da vó da [esposa] era muito parecida. […] então isso tudo traz lembranças, né, de muitos anos atrás, e era um espaço que todo sábado a gente estava lá […] a gente acabou, por sorte, ficando com a copa que era dela. A gente modificou a decoração, mas o canto alemão, as prateleiras em cima, grande parte dos canecos de chope eram dela, então a lembrança boa está aí, né. (Carlos Alberto, 49, empresário da const. civil, mora com esposa e filhos). Grifo nosso. (GUIMARÃES, 2007, p. 207)
Neste momento, a exposição de mais alguns importantes conceitos da teoria dos signos de Peirce torna-se oportuna, sendo que elucidam as questões acerca dos objetos.
Ícone, índice e símbolo são tipologias sígnicas localizadas na esfera da secundidade, ou seja, referem-se ao objeto em algum aspecto. E como toda a dinâmica semiótica é triádica, o ícone guarda relação com a primeiridade, o índice com a segundidade e o símbolo com a terceiridade. Começaremos pelo ícone:
…um signo é um ícone se ele se assemelha a seu objeto e se a qualidade ou caráter, no qual essa semelhança está fundada pertence ao próprio signo, quer seu objeto exista ou não. […] São flashs de incandescência mental, chamamento de luz, antes da luz, que podem durar anos ou alguns segundos. Artistas e cientistas sabem a esse estado de indeterminação porque com ele convivem. […] É por essas razões que a criação estética, quanto mais radicalmente criadora, não é senão qualidade de sentimento que se engendra numa forma. (SANTAELLA, 1995, p. 143 e 146).
A fim de exemplificar o ícone, podemos citar o desenho que o filho faz dos pais e coloca na porta da geladeira. Tal imagem apenas demonstra como a criança os vê. É mera semelhança. O ícone tem caráter tão puro e tão artístico que Santaella (1995, p. 150) diz “num olhar que varre desavisadamente um horizonte crepuscular, no roçar distraído e amorável de dois corpos, no degustar do vinho…” O lar é reduto de ícones, talvez por isso tão mágico.
Quanto ao índice, a definição de Júlio Pinto (1995, p. 28) se faz didática, sendo “como aquela função sígnica que, em vez de exibir em si traços do objeto (característica do ícone), aponta para fora de si na direção do objeto.” Como exemplo de índice, sendo este o signo que realmente remonta a secundidade, temos a fotografia e um depoimento extraído da pesquisa realizada por Araújo (2007, p. 344) pra ilustrar esse fenômeno: “[…] As fotografias deles quando eles eram pequenos, oito, nove anos, dez anos. Aquilo ali cada vez que eu vejo, eu choro, de ver eles pequenos.” (José Corvina dos Reis, 55, contador, separado, mora com os filhos).
A fim de fechar o ciclo dos três elementos que integram a secundidade, necessário abordar o conceito de símbolo, que é o signo mais completo da tricotomia, e para tanto Santaella (1995, p. 172) mais uma vez se mostra esclarecedora ao dizer que “o símbolo é um signo cuja virtude está na generalidade da lei, regra, hábito ou convenção de que ele é portador, e cuja função como signo dependerá precisamente dessa lei ou regra que determinará seu interpretante.” Ou seja, o símbolo gera um signo convencionado, pré-estabelecido, aceito por todos. Por exemplo, um chuveiro é utilizado para a higienização do corpo, sendo que qualquer intérprete assim o associa.
[2] ZUSMAN, Waldemar. Sigmund Freud e arqueologia: Sua coleção de antiguidades. Texto: As origens de antiguidades de Freud. São Paulo: Ed. Salamandra, 1994.
4. Conclusão
A subjetividade da casa manifesta-se no lar que todo sujeito, em algum período da vida, experimenta em sua completude. O novelo formado pelos elementos materiais/estruturais e imateriais/subjetivos desvenda a essência do habitante e culmina na sensação de estar em seu lugar. A relação que se estabelece com o ambiente no qual se vive o transforma em santuário de significações.
As inserções semióticas e todo o respaldo teórico que Peirce nos fornece tornam mais lógicos os aspectos que envolvem o lar, sobretudo os torna perceptivos, ou seja, primeiríssima primeiridade.
Sem a experiência do lar, o sujeito sente-se abstraído da própria história, órfão de referenciais. Percorre vários lugares por vezes muito interessantes, contudo não encontra descanso em nenhum deles por não ter sido construída uma relação cotidiana de afeto com o local.
Casa, aba da pradaria, ó luz da tarde,
De súbito adquires uma face quase humana.
Estás perto de nós, abraçando, abraçados.
Bachelard (apud. Rilke).
Referências
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Currículo da autora
Débora Braga Araújo
Acadêmica do 4º período do curso de Design de Interiores no Instituto Metodista Izabela Hendrix. Aluna matriculada na disciplina Design e Semiótica ministrada pela Professora Doutora Juliana de O. Rocha Franco ofertada pela Universidade Estadual de Minas Gerais – UEMG através do programa de pós-graduação stricto sensu – Mestrado em Design.