DO CROQUI À MAQUETE ELETRÔNICA: REFLEXÕES SOBRE A UTILIZAÇÃO DE SOFTWARES GRÁFICOS NO PROCESSO DE CONCEPÇÃO E REPRESENTAÇÃO DE PROJETOS DE ARQUITETURA E DESIGN DE INTERIORES.
Autor
Leandro Canabrava Damas
Resumo
Este artigo tem como objetivo refletir acerca da representação e do desenvolvimento de projetos nas áreas de arquitetura e de design de interiores a partir do uso de softwares gráficos, aqui entendidos como instrumentos de mediação entre a ideia (conceito) e sua efetiva comunicação com o público (através da representação gráfica). Tanto a técnica quanto a tecnologia são temas pelos quais se pretende navegar e refletir sobre suas concepções aplicadas ao fazer humano, em especial no processo de informatização pelo qual passou e ainda passa a representação gráfica de projetos. Trata-se de uma revisão bibliográfica acerca do tema, sobretudo a partir do resgate de alguns conceitos presentes nas obras de Heidgger (2013), Simondon (2007) e Hadricourt (1964) e das análises presentes nos trabalhos brasileiros de Josgrilberg (2005), Gil (2003), Campos e Chagas (2008) e Segnini (2002).
Palavras-chave: Tecnologia, Softwares Gráficos, Design de Interiores, Arquitetura.
Abstract
This article aims to reflect on the representation and development of projects in the areas of architecture and interior design from the use of graphic software, here understood as instruments of mediation between the idea (concept) and its effective communication with the public ( through graphic representation). Both technology and technology are themes that are intended to reflect on their conceptions applied to human labor, especially in the process of computerization that has passed and still passes the graphic representation of projects. It is a bibliographical review about the theme, mainly from the retrieval of some concepts present in the works of Heidgger (2013), Simondon (2007) and Hadricourt (1964) and the analyzes present in the Brazilian works of Josgrilberg (2005), Gil (2003), Campos and Chagas (2008) and Segnini (2002).
Keywords: Tecnologia, Softwares Gráficos, Design de Interiores, Arquitetura.
1. Introdução
Desde que se estabeleceu na Terra, o homem procura meios de comunicar-se graficamente. Antes mesmo do desenvolvimento da linguagem falada ou escrita, ele já se expressava por sinais e signos, através das pinturas rupestres, conforme já confirmado por arqueólogos e antropólogos por todo o mundo. Há indícios de que, nesse período, o Paleolítico, a comunicação oral era pouco desenvolvida, baseada em poucos sons. De lá para cá, desde a descoberta do fogo, houve intenso desenvolvimento, tanto da linguagem quanto das técnicas e tecnologias apropriadas, elaboradas e/ou utilizadas pelo homem.
Para explorar o assunto, será realizado o resgate de alguns conceitos presentes nas obras de Heidgger (2013), Simondon (2007) e Hadricourt (1964) e das análises presentes nos trabalhos brasileiros de Josgrilberg (2005), Gil (2003), Campos e Chagas (2008) e Segnini (2002).
Pretende-se, portanto, um diálogo com esses autores, no sentido de enriquecer a reflexão acerca desse processo atual, dinâmico, hoje com grande interferência do mundo digital, mas que advém de um longo processo desde a origem da expressão gráfica primal, há alguns milhares de anos.
Muito embora se entenda que as atribuições dos profissionais da área de arquitetura e do design de interiores sejam distintas e complementares, parte-se do pressuposto que ambas utilizam praticamente as mesmas técnicas, instrumentos e ferramentas de representação gráfica para concepção e apresentação de seus projetos e, nesta medida, não parece razoável abordá-las em separado. Considera-se portanto como ponto de partida que o croqui, o desenho técnico, o desenho arquitetônico e a perspectiva são bases técnicas comuns às duas áreas.
2. Técnicas primitivas de expressão gráfica
No que diz respeito ao desenho enquanto expressão das ideias, entendido aqui no sentido da representação de seres, objetos, ideias, estas representadas em uma superfície (por ora física), pode-se dizer que este sempre esteve presente nas mais diversas épocas, civilizações, regiões e contextos históricos. Inclusive, a própria linguagem escrita deriva em parte da linguagem do desenho, tendo sido algumas delas derivadas do desenho figurativo, simbólico. À medida que o tempo foi passando, o homem dominou vários meios de expressão: a linguagem falada, a linguagem de sinais, a escrita, a música, a literatura, as artes plásticas, a arquitetura, o design, dentre outros.
Também, desde os primórdios, o homem apropriou-se do espaço natural como habitação e, tão logo foi possível, passou a produzir sua própria arquitetura (do grego arkhé – principal e tékhton – construção) que logo adiante ultrapassaria os limites da morada. Para tal produção de edificações ser possível, lançou-se mão de técnicas de engenharia, do conhecimento e (disponibilidade) de matérias primas e mais adiante do desenho de projetos, outrora realizados de forma mais empírica e/ou não sistematizada. A origem do design de interiores remonta o período das primeiras civilizações humanas, em especial a egípcia, quando a preocupação com os espaços interiores (até mesmo das tumbas) já se fazia presente. Desde então, tanto o projeto de edificações propriamente ditas quanto a preocupação com o conforto térmico, a iluminação, a ornamentação e os materiais empregados no interior dos espaços que o homem foi capaz de conceber e construir estabeleceram relação entre a arquitetura e o design de interiores.
3. A representação gráfica em projetos de arquitetura e design de interiores
Pensando a representação gráfica da arquitetura e do design de interiores, uma técnica que é tanto meio (pelo qual se expressa, comunica) como também é o próprio fim (a expressão dada, o que ela ilustra) esbarra-se na visão de Heidgger (1859), para quem, aliás, a técnica sempre esteve presente na humanidade, é produto e meio da mesma:
Questionamos a técnica quando questionamos o que ela é. Todos conhecem os dois enunciados que respondem à nossa questão. Um diz: técnica é um meio para fins. O outro diz: técnica é um fazer do homem. As duas determinações da técnica estão correlacionadas. Pois estabelecer fins e para isso arranjar e empregar os meios constitui um fazer humano. O aprontamento e o emprego de instrumentos, aparelhos e máquinas, o que é propriamente aprontado e empregado por elas e as necessidades e os fins a que servem, tudo isso pertence ao ser da técnica. O todo destas instalações é a técnica. Ela mesma é uma instalação; expressa em latim, um instrumentum. A concepção corrente de técnica, segundo a qual ela é um meio e um fazer humano, pode, por isso, ser chamada de determinação instrumental e antropológica da técnica (HEIDEGGER, 1959, p. 376).
Quando apresentam os conceitos de Simondon como fundamentos para o design, Campos e Chagas (2008, p.1) iniciam seu ensaio indicando a visão da sociologia da inovação que considera a técnica não apenas como “[…] instrumento a serviço de interesses ideológicos […]”, mas também como “[…] um importante espaço de mediação […]”. Nesse sentido, corroboram a ideia de que é possível a existência da técnica como um processo isento de interpretações tendenciosas e mencionam Simondon como um dos responsáveis por este redirecionamento. Campos e Chagas (2008) resgatam, inclusive, uma citação onde o próprio Simondon (apud Campos e Chagas, p.1) reforça essa ideia: “A operação técnica é uma operação que coloca em jogo as leis verdadeiras e a realidade natural”. Pode-se aqui relacionar que a ideia da representação técnica tanto na arquitetura quanto no design de interiores, considerada aqui tendo como bases os desenhos técnico e arquitetônico, seria em princípio “isenta” e teria caráter 4 universalizante – no caso do Brasil, há a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), entidade esta que estabelece Normas Brasileiras (NBR´s) que “regulam”, entre outras tantas coisas, a representação em desenho técnico e arquitetônico.
Percebe-se ainda, em parte, uma relação entre a representação técnica e a língua, já que, como apresenta Gil (2003), acerca do surgimento de novos vocábulos e novas unidades lexicais na língua portuguesa e de outros que vão caindo em desuso, o mesmo acontece com elementos, técnicas e materiais utilizados na arquitetura e no design de interiores. Todavia, assim como o sistema linguístico possui uma base técnico-científica, as áreas da arquitetura e do design de interiores também possuem um sistema de representações gráficas elementares e ambos têm processos de normatização análogos, uma vez que o objetivo comunicacional deva ser atingido. Dessa forma, as diversas representações gráficas de projetos, sejam eles de arquitetura ou de design de interiores, são, em certa medida, análogas aos subsistemas das línguas e, assim sendo, poderíamos comparar o desenho técnico/arquitetônico à definição que Gil (2003) apresenta em relação às “línguas de especialidades”, definição esta defendida, segundo ela, por alguns linguistas: “[…] conjunto de elementos linguísticos passíveis de se manifestarem na comunicação entre especialistas de um dado domínio, e também entre especialistas e um público em vias de especialização […]” (GIL, 2003, p.115).
Gil (2003) associa as “línguas de especialidade” ao conceito de “domínios de experiência” intimamente relacionados a especificidades de uma comunidade linguística, como, por exemplo, indivíduos que estudam ou lidam diretamente com a concepção ou produção de espaços edificados e, por conseguinte, dos seus interiores (designers, arquitetos, engenheiros, técnicos em edificações, entre outros): “Os campos de experiência referem-se às profissões e são estranhos aos indivíduos que não exercem a mesma profissão ou que não estejam de algum modo ligados a ela” (GIL, 2003, p.115). São vários os termos utilizado neste universo que parecem ininteligíveis aos leigos, constituindo um vocabulário próprio. Mesmo os elementos gráficos, que constituem sua representação técnica (plantas, cortes, fachadas e seus símbolos), fogem ao alcance das pessoas ditas leigas, dentre as quais estão inclusos os futuros usuários destes espaços.
Antes de avançar nas reflexões, vale destacar que as representações gráficas utilizada em projetos de arquitetura e design de interiores, por mais realistas que se proponham a ser, ainda hoje são apenas uma abstração do devir, ou seja, da 5 concretização do objeto – a edificação em si seus espaços interiores. É bem verdade que a representação abstrata de formas já se fazia também presente nas primeiras pinturas rupestres e, ainda que fosse devido à ignorância da técnica de representação realista, já demonstrava a capacidade humana de se expressar através de signos os quais viriam a ser re-interpretados e ressignificados pelo próprio homem.
As ferramentas que possibilitavam a representação gráfica nos primórdios eram praticamente oferecidas in natura, muito diferente dos instrumentos que se tem hoje. Nesse sentido, também a forma como os profissionais de arquitetura e design de interiores apropriaram-se dos instrumentos de representação os empregaram com esta finalidade (a da expressão) sempre foi dependente dos métodos de expressão gráfica vigentes na época. Até o renascimento, a maioria das construções só poderia ser erguida na presença do profissional que a projetara, uma vez que o projeto e sua representação faziam-se “concretos” no próprio canteiro de obras. A partir do emprego do método Mongeano e a representação de projeções ortogonais nos desenhos técnico e arquitetônico, um universo de novas possibilidades abriu-se e o projeto passou a poder ser pensado e representado fora do espaço (físico) onde seria construído. O mesmo se pode dizer com relação ao desenvolvimento e adoção das técnicas da perspectiva na representação dos espaços – a partir de então era possível “emular” o projeto de forma mais próxima daquilo que seria a observação in loco após sua construção, facilitando inclusive a representação de seu entorno – o que seria complementado mais adiante com a adoção de maquetes em escala.
Os resultados gráficos (em termos de expressão artística) que as ferramentas de desenho empregadas nessa representação arquitetônica possibilitavam obter até o final do século XX foram muito influenciados pelo gesto de quem projetava os espaços, uma vez que, por mais avançadas que essas ferramentas fossem, eram sempre utilizadas pelas mãos humanas e tinham seu design apropriado para tal.
Já nas primeiras décadas do século XX, no período do modernismo (entre guerras e pós-guerras), houve uma forte tendência à racionalidade tecnicista e mesmo formalista. O desenho e o próprio objeto arquitetônico sofreram grande transformação, com a redução da quantidade de ornamentação e mesmo os elementos passaram a assumir formas mais industrializáveis. O intuito era estabelecer uma arquitetura social, mais acessível e de fácil execução que agora as novas técnicas do concreto armado permitiam produzir. Aqui a tecnologia empregada era então o processo pelo qual a expressão da arquitetura chegava às vias de fato. Esse processo de aplicar a ciência da arquitetura (e engenharias) à atividade de construir em escala industrial aproximava-se da visão de Haudricourt (1964), que entende a técnica com sua relação social, a tecnologia como um ponto de vista, sendo o mais essencial o humano.
Cabe ressaltar que as propostas projetuais dos modernistas era, sobremaneira, baseada em ideais socialistas – ainda que na concepção dos espaços, sobretudo o urbano, a escala humana, e por sua vez as relações antropométrica, pareçam ter tido menor importância que a monumentalidade espacial. Muitos dos arquitetos e artistas deste período, dentre os quais o brasileiro Oscar Niemeyer, eram declaradamente comunistas. O que se pretende com essa explicação é verificar que uma proposta de produção de uma arquitetura social em série é facilitada pelas técnicas, mas essa mesma facilidade foi pelo capital apropriada e serviu às grandes corporações que tinham outros objetivos na exploração da ideia de que “menos é mais”, recorrente no discurso modernista. Como aponta Josgrilberg (2005, p.279) em relação às observações de Octavio Ianni (1998): “toda tecnologia, à medida que é inserida na sociedade ou no jogo das forças sociais, logo se transforma em técnica social”.
4. A informática aplicada aos projetos de arquitetura e design de interiores
Segundo Segnini (2002, p. 63), nos anos 1960, um grupo de especialistas afirmava que a lapiseira e o papel seriam substituídos pela mesa de desenho eletrônico, com o advento de um sistema denominado Sketchpad. Quando “pela primeira vez foi apresentado publicamente o uso da infográfica interativa”, houve, segundo o autor, muita polêmica em relação ao processo de criação do projeto. Para alguns, essa mesa era uma ameaça, enquanto outros a entendiam simplesmente como uma “lapiseira mais equipada” e que não modificaria o projetar (enquanto conceito). No final dessa década e início da seguinte, aparecem registros, nos E.U.A., indicando o uso da informática em médios e grandes escritórios de arquitetura, mas de forma ainda incipiente.
Popularizado nas décadas de 1980 e 1990, os microcomputadores pessoais inauguravam uma nova era, a era digital. Esse utensílio, hoje em quantidade muito superior àquela do final do século passado, estabeleceu uma nova relação entre o homem e a máquina. Pensado para ser comercialmente um PC (personal computer), este não foi um utensílio personalizado, pelo menos não a priori, assim como não o foi acesso ao mesmo. Os softwares eram limitados e de início simplesmente reproduziam os fazeres humanos do mundo real sem contudo conseguir emular o modus operandi 7 desses fazeres. Isto contribuiu para criar e/ou consolidar uma geração de tecnofóbicos, ao mesmo tempo em que passou a ter cada vez mais adeptos, os tecnofílicos.
Sem tomar partido de um lado ou de outro, é importante verificar que, para além das afinidades ou repulsas a este ou aquele instrumento, técnico ou utensílio, trata-se de um contexto, um universo mais amplo, o universo da tecnologia, cuja neutralidade ou não é assunto de debate muito anterior ao aparecimento dos famosos microchips. Como resgata Josgrilberg (2005, p. 279), as posições de Hebert Marcuse (1964) para quem o “a priori tecnológico é também um a prioiri político”, ideia que se complementa com um destaque do mesmo autor por meio da seguinte frase de Marx: “O moinho manual te dá a sociedade com o senhor feudal; o moinho a vapor, com o capitalista industrial”. Mais adiante, ele vai lembrar que gigantes como a Microsof e IBM (além de outras não citadas como a Apple) trouxeram a sociedade informacional que se tem hoje.
No Brasil, o computador aparece nos escritórios de arquitetura e design de interiores em meados dos anos 1980, na ocasião a um custo muito elevado e realizando ainda tarefas de geração de insumos de projeto: memoriais descritivos, serviços administrativos, entre outros. Segundo Segnini (2002), a inserção de computadores nas escolas de arquitetura no Brasil ainda eram incipientes e em disciplinas de caráter complementar, conforme trecho que ele traz da revista AU (Arquitetura e Urbanismo) sobre a inserção dessa disciplina na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Carlos:
(…) a computação e informática aplicada à arquitetura é, por exemplo, uma disciplina que vai sendo introduzida junto com a matemática, hidráulica, cálculo, sem que se constituam massacre ou assunto maçante (MARINHO apud SEGNINI, 2002).
Já na FAUUSP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, essa implementação deu-se através de cursos de extensão que visavam formar especialistas para que estes desenvolvessem sistemas gráficos para que, então, os arquitetos pudessem utilizá-los. A polêmica em torno desses cursos trazia à tona uma questão: seria essa a função do arquiteto? Não seria ele o usuário desses sistemas? Essas críticas são reveladas por Inácio Loyola Brandão (1997) no trecho que comenta sobre o fato de sua companheira Márcia ter sido impelida a fazer uso do AutoCAD:
Arquiteta, ela recém aprendeu a trabalhar com os complicados mecanismos do Autocad em seu computador. Um dia ela viu que se tornavam obsoletos o nanquim, os esquadros, compassos, papéis, lapiseiras, a caneta rotring, réguas, a velha gilete para apagar erros… Determinada, ela trouxe Kátia, uma professora e, em poucos meses, dominou o sistema (BRANDÃO apud SEGNINI, 2002, p.62).
Coincidência ou não, no período entre as décadas de 1980 e 1990 estabelecem-se normatizações do desenho arquitetônico pela ABNT que visavam nacionalizar o vocabulário e os símbolos utilizados nesse tipo de desenho. Seria essa normatização uma forma de limitação da expressividade através da utilização de instrumentos “programados” para a realização de desenhos técnicos? Não é o que se experimentou, uma vez que a arquitetura fazia uso de técnicas e ferramentas que permitiam formas de expressão e comunicação mais livres – através de croquis, perspectivas e maquetes. Nesse ponto, poder-se-ia associar a evolução dos instrumentos de desenho não somente a uma explicação determinista, em que a adaptação constante das diferentes técnicas aconteceria exclusivamente para atender a necessidades objetivas de representação. Essa ideia aproxima-se daquilo que também podemos encontrar em Haudricourt (1964), autor que defende a ideia de que o instrumento tem dentro de si individuações que não se explicam somente à necessidade e, nesse sentido, também se aproxima da visão de Simondon (2002), para quem a técnica e tecnologia assumem caráter mais humanista.
No período entre as décadas de 1980 e 1990, Segnini (2002) levanta depoimentos nos quais se percebe que a utilização do computador por estes profissionais em seus escritórios vai se firmando gradativamente, marcando a migração do desenho arquitetônico do fazer manual(prancheta) para o digital (computador) através dos programas conhecidos como C.A.D. – Computer Aided Design ou desenho assistido por computador. No início, o processo era apenas de compilação, como o desenho estivesse apenas sendo passando o desenho “a limpo”, ou seja, fazia-se o desenho praticamente todo a mão e a lapiseira (esboço), mas em vez de se passar à tinta (nanquim), essa etapa passou a ser a reprodução (e normalização) do desenho assistido por computador. A essa altura ainda não se tinha no computador ferramentas suficientemente desenvolvidas/adaptadas para a representação gráfica “tridimensional” (emulada) e muito menos a produção de imagens de projetos com o fotorrealismo que se tem hoje e ainda mais distante estava da realidade virtual aumentada.
Cada vez mais, observa-se o computador (e os “utensílios” análogos) substituindo até de forma mais produtiva alguns afazeres outrora manuais que, nesse sentido, perdem espaço e muitas vezes são desvalorizados. Mas para que de fato serve o tal “utensílio” em questão? Segundo Cresswell (1989, p.1), “a propriedade fundamental de qualquer utensílio é a transformação da matéria-prima” e também completa: “Quando o interesse se concentra na transformação, é impossível analisar o efeito do utensílio sobre um material sem pensar na proveniência deste material […]”. Assim, antes de avaliar o uso 9 do computador, é preciso estabelecer de qual uso está se falando e que matéria-prima ele transforma.
Retoma-se então um alerta recorrente acerca dos críticos da tecnologia ao fato de que nem sempre a sua implementação traz consigo o desenvolvimento de melhores relações humanas. Esse destaque é muito bem lembrado a seguir:
Dada a influência da tecnologia nas organizações e percepções que se tem da realidade, ainda que relacionada a outros fatores culturais, poder-se-ia concluir que a tecnologia não é neutra? Sim, ela não é neutra, porém a resposta exige uma melhor elaboração a fim de evitarmos um determinismo imobilizador das ações humanas. O retorno à teoria critica, especialmente, serve como primeira e necessária etapa de reflexão. É preciso estar atento ao deslumbramento, por vezes enganoso, que as novidades tecnológicas exercem. As tecnologias dominaram o espaço, mas não houve obrigatoriamente o desenvolvimento das relações humanas (JOSGRILBERG, 2005, p.281).
Enquanto no final dos anos 1990 e, portanto, encerrando-se o século XX, poder-se-ia afirmar que o debate acerca da viabilidade ou propriedade da aplicação da tecnologia computacional enquanto instrumento que mediava a representação gráfica estava vencido, outras discussões começam a ser levantadas:
O projeto desenhado com o novo instrumento deixa de ser novidade e passa a ser realidade, relacionada frequentemente à racionalização do desenvolvimento do projeto e às exigências de mercado, ou melhor, de maior possibilidade de competição no mercado. […] partindo da compreensão de que esta tecnologia está incorporada à produção do projeto, as discussões centram-se sobre quais equipamentos ou programas serão utilizados, sobre suas potencialidades e adequações (SEGNINI, 2002, p.68).
O que Segnini (2002) aponta a partir de sua pesquisa durante a coleta de 15 anos de depoimentos de profissionais da área corrobora o que diz Josilberg (2005) logo antes, seja em relação à não neutralidade da tecnologia, seja no fato de que ela não necessariamente melhora as relações humanas. O que se viu foi uma maior dependência de uma determinada técnica e acirramento da competitividade.
5. A concepção do projeto e a computação gráfica
Uma das resistências apresentadas por parte dos profissionais em relação ao uso da informática e suas ferramentas (softwares) para o projeto tem origem, segundo eles mesmos, na ideia de que ela pode interferir no processo de concepção. Essa visão é ilustrada na afirmação que a arquiteta Romano (apud SEGNINI, 2002, p.69-70) faz em relação ao processo de informatização tardia da arquitetura no Brasil: “[…] uma certa 10 desconfiança característica do nosso meio, que durante muito tempo marginalizou seu uso por causa de uma suposta incompatibilidade entre a liberdade criativa e a conotação tecnicista a ele associada, é a principal responsável por este atraso”. Outros profissionais da área são citados por ele de modo a confirmar o temor existente, muito embora defendam o uso da tecnologia, como é o caso do depoimento já em 1987 de um dos mais conhecidos arquitetos à época, João Filgueiras (Lelé), à época ainda vivo, com 56 anos (falecido em 2014, aos 82) quando afirmou:
[…]a criatividade jamais será esquecida. Pelo contrário, acho que a tecnologia é um instrumento que a enriquecerá. Se não utilizarmos o computador, que é um instrumento maravilhoso, porque certas pessoas vão fica bitoladas por ele, o problema é da pessoa, não do computador (FILGUEIRAS apud SEGNINI, 1987, p. 18).
Conforme dito anteriormente, não se deve esquecer que nem todos os meios de expressão gráfica foram substituídos pelo computador, muito embora no século XXI uma enorme variedade de aplicativos tenha ofertado uma também incontável variedade de formas de expressão mais ou menos próximas à expressão gestual da mão humana quando do uso do lápis, da execução dos croquis. Também se pode pensar que nem a máquina de escrever nem o computador removeram do artista literário o seu poder de comunicação, nem o do jornalista. Como o próprio Ruy Gama, arquiteto e historiador da técnica e da tecnologia aponta em sua declaração feita também à revista AU, no mesmo número que expõe a visão de Lelé:
[…] não vejo nenhuma dificuldade em substituir certos trabalhos pelo computador. Não vejo nenhuma resistência a esses meios mecânicos, eletrônicos, são até fascinantes, mas exigem longo aprendizado. […] Mario de Andrade comprou uma máquina de escrever e até encontrou um nome para ela: Manuela. O importante, enfim, é que o instrumento pode mudar, mas a essência do desenho continua a mesma. Ou seja, desenho do latim desidium, designum, desejo, vontade, projeto (GAMA apud SEGNINI, 1987, p. 12).
Aliás, em relação à expressão do desenho, os arquitetos modernistas fizeram largo uso dos croquis como forma de comunicação gráfica, expressão gestual, o “traço” do arquiteto. Quem não conhece as expressões eternizadas nos croquis de Niemeyer, sejam os da Igreja da Pampulha em Belo Horizonte, dos prédios de Brasília, do Museu de Niterói? Associava-se a ideia do desenho de expressão às noções de perspectiva, projeções ortogonais, etc. Esse tipo de expressão era inclusive defendido à época como sendo uma forma de resistência, uma recusa a soluções ou “partidos” arquitetônicos prontos. Era como se fosse a semente, a matriz geradora de todo o desenho formal, regulamentado, executivo. Essa visão é defendida por Robin Evans (1989), resgatado na obra de Segnini (2002):
Os croquis representam um fenômeno particular. É impossível dizer se eles tratam de projeção ou não […] como se prestam a outras interpretações, se transformam no que se deseja […] Não seria correto definir como aproximações de projeções. Suas relações com o objeto são infinitamente mais vagas que as observadas nos desenhos de projeção […] pois os croquis evidenciam mais a sugestão do que a intenção. […] Os croquis se tornam uma maneira de resguardar, de manter em suspensão, de recusar rapidamente a opção por um partido, de organizar a determinação das figuras ou das formas. As imagens metafóricas às quais o ligamos frequentemente são as de concepção, gestação e nascimento. Seu caráter amorfo, informal, embrionário é o que o distingue (ROBIN apud SEGNINI, 1989, p.33).
Por mais que a tecnologia mostre-se incorporada ao cotidiano do homem contemporâneo, não sendo diferente nos diversos campos profissionais, ainda resta a possibilidade do esboço, do rascunho, da forma elementar e do rabisco, seja ele hoje o croqui a lápis e amanhã um instrumento que digitalize o gestual (que aliás já existe) e, na maneira que a tecnologia aí aplicada for entendida como extensão do humano, ela não o substituirá, mas será complemento e mediadora da ideia que germina, esta sim, da mente humana.
Referências
CAMPOS, Jorge Lúcio; CHAGAS, Filipe. Os conceitos de Gilbert Simondon como fundamentos para o design. Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação. 2008. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/campos-jorge-chagas-filipe-conceitos-de-gilbert-simondon.pdf>. Acesso em: 28 out. 2016.
CRESSWELL, Robert. Utensílio. Enciclopédia Einaudi, Lisboa, v.16, p.313-328, 1989. Disponível em: <http://documenta_pdf.jmir.dyndns.org/Utensilio_Einaudi.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2016.
GIL, Isabel Teresa Morais. Algumas considerações sobre línguas de especialidade e seus processos lexicogénicos. Máthesis, n. 12, p. 113-130, 2003. Disponível em: < http://www4.crb.ucp.pt/biblioteca/Mathesis/Mat12/Mathesis12_113.pdf>. Acesso em: 15 out. 2016.
HAUDRICOURT, André-Georges. La technologie, science humaine. La pensée, Paris, n. 115, p. 28-35, mai-juin., 1964. Disponível em:
<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5816034v/f30.image.langPT>. Acesso em: 18 out. 2016.
HEIDEGGER, M. A questão da técnica. Scientiae Studia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-98, 2007. Disponível em: http://www.scientiaestudia.org.br/revista/PDF/05_03_05.pdf. Acesso em 6 de nov. 2013. Acesso em: 20 out. 2016.
JOSGRILBERG, Fabio B. Tecnologia e sociedade: entre os paradoxos e os sentidos possíveis. Comunicação & Educação, n. 3, p. 278-287, set./dez., 2005.
SEGNINI, Francisco Jr. A Prática Profissional do Arquiteto em Discussão. 214f. Tese (Doutorado). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002.
SIMONDON, Georges. El modo de existencia de los objetos técnicos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007.
Currículo do autor
Leandro Canabrava Damas
Arquiteto e Urbanista. Especialista em Metodologia do Ensino Superior e em Gestão de Processos de Produção Gráfica (ambos pelo Centro Universitário Newton Paiva). Mestrando em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local (Centro Universitário UNA). Experiência como arquiteto e urbanista, produtor gráfico e técnico em design. Docente nos tecnólogos em de Design de Interiores e Design Gráfico e nos bacharelados em, Arquitetura e Urbanismo, Jornalismo e Publicidade e Propaganda.