O DESIGN DE INTERIORES ‘ALÉM DE SI’ – A POÉTICA, O TEMPO E A MEMÓRIA
Autor
Anderson Diego da S. Almeida
1. Sobre o hoje, o futuro
Que ninguém se engane com a aparência amena dessa água, cuja superfície transparente esconde a profundidade vivente de um oceano! (FLUSSER, 2013, p. 12).
Fig. 1. Vista interna da Casa da Flor. São Pedro da Aldeia, Rio de Janeiro. Fotografia de Nelson Kon.
Fonte: http://www.nelsonkon.com.br/casa-da-flor/
Vejamos o design de interiores como ele é. E qual sua feição? É possível dizer que antes de ser substantivo e/ou verbo ele apenas é? Incógnitas, questões, dúvidas, ruídos, estranhamentos. O que vem a ser o design de interiores além de si?
As primeiras impressões sobre este artigo se constroem sobre o design de interiores e seu fugar, o que dele e nele se faz, o que nele tem e se realiza. O teor de si, seu além, a tentativa de compreensão de sua dimensão. Este artigo pretende ir além. Ir do conceito, das intempéries, do fugidio. Este artigo é ranhura. Borrão sobre o projeto, sobre o tempo dele, do ontem, do agora, vislumbrando um amanhã que é breve, talvez incerto. Vislumbremos, então!
Para tal vislumbre, comecemos por adentrar na poesia. Sim. O design de interiores se faz de uma ação poética. Talvez este seja o primeiro pressuposto que o legitime a ser originado de outras artes. O design de interiores é um projeto, um processo, um produto. Mas, antes de tudo isso, é experiência: das suas potencialidades, das suas memórias e dos seus rastros. A tessitura deste artigo está nessas três dimensões/experiências, que nos ajudarão a dar um passo na compreensão do que venha ser esse ‘além de si’, sobre o ser poético, sobre a essência do tempo e sobre os vestígios do ontem que revelam o hoje, olhando para o amanhã.
Como diz a epígrafe deste artigo, lindamente pontuada por Vilém Flusser, não nos deixemos enganar pelo aparente, pela estética incrustada do tempo paralisado, mas acreditemos que nessa inércia há caminhos a serem descobertos, trilhados e experienciados. Nos meandros dessa possibilidade de novos encontros, convidamos você a burilar ‘esse além’, numa espécie de abertura de um baú, de um sopro intenso, de um escavar uma superfície já sedimentada, a fim de enxergar o design de interiores com outros olhares, longe de métodos, receitas, referenciais enfadados.
2. Sobre o hoje, o poético, o tempo, o vestígio
Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma
história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem
vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente
(De mãos dadas, por Carlos Drummond de Andrade).
Fig. 2. Composição feita com materiais descartados. Casa da Flor. São Pedro da Aldeia, Rio de Janeiro. Fotografia de Nelson Kon.
Fonte: http://www.nelsonkon.com.br/casa-da-flor/
Nas potencialidades do poético, comecemos pelas palavras do poeta Drummond que abrem a seção. Nelas, enveredamo-nos para externalizar a tensão que se dá em pensar um futuro para o design de interiores, ou o designer de interiores do futuro? Esta é a preocupação intensa que coage a prática sensorial e artística do designer de interiores. Creiamos que é pensar tanto num futuro, que talvez esqueçamos que ele se faz do/no presente, pois é olhando para seu construto no agora que estaremos diante de sua potencialidade. O cerne da questão é: não precisamos enxergar um futuro, ele já está sendo vivido. O design de interiores é uma espécie de tempo anacrônico, daqueles que vêm de um lugar de um passado e se corporifica no presente. Imaginemos, então, que ao começar a projetar um espaço, o designer tem diante de si muitos tempos. Podemos até questionar sobre quais tempos são estes; todavia, sabendo que por serem muitos, dizem e se mostram, muitas vezes, sem dimensão.
Para elucidar nossa argumentação, pensemos num espaço a ser projetado. Antes de cada transformação, há nele as marcas de uma vivência de outrora: as paredes, o teto, o piso, as brechas, os rasgos, os fios, as tomadas caídas, o cano quebrado, o concreto aparente, a porta desalinhada. Tudo isso são tempos, memórias de alguém, do vivido, do próprio espaço. Por sinal, ele foi feito para ser palco de narrativas de vidas infinitas. Agora, pensemos neste mesmo espaço sob domínio de um designer de interiores, sobre a constituição de um briefing, um roteiro esquematizado entre o(a) projetista e seu/sua cliente. Onde estão estes tempos-memórias?
Drummond, com seu poema contundente, é visceral e vai no âmago da questão: é preciso pensar num amanhã para o design de interiores? Acreditamos que em suas palavras há ratificação de que é preciso viver o agora, olhar o hoje, vislumbrando o tempo do próprio design.
É do tempo que este texto se tece. O tempo que faz o design. O tempo do projeto. O tempo das memórias. O tempo das coisas. O tempo do ontem, do agora, do futuro breve: “O tempo passa a despeito de nós e a despeito de tudo o que se passa no tempo” (KLEIN, 2019, p. 37). O design de interiores é esse tempo, escamoteado, constituído sobre/de memórias que se entrelaçam e, muitas vezes, cegam. O design é o próprio tempo: o da sua existência, o da criação, do seu autor e do seu objeto. É o tempo da não-coisa, das coisas, das camadas não reveladas, assim dialoguemos com Flusser (2013). O tempo da poética que se articula para que ele, o design de interiores, constitua sua dimensão. É o tempo que remonta, traça, investiga e desata fios enrolados e atas os soltos. O design de interiores, em sua potencialidade poética, é esse constante atar/desatar.
E por falar em tempo, precisamos falar de bricolagem, onde ela se faz e é o tempo do próprio design. Do design que foi, do que hoje se faz e do que virá, ou aquele que utopicamente imaginamos. Nesse entrelace mnemônico corroboramos com a ideia de Lévi-Strauss (1989) para posicionarmos um olhar aparentemente estranho à prática projetual no Campo do Design, seja em qualquer de suas modalidades. Aqui damos partida: o designer de interiores é um bricoleur. Mas, por que o intitular assim?
Vejamos o que nos apresenta o autor citado anteriormente:
(…) o bricoleur trabalha a partir de um conjunto de utensílios, materiais e resíduos que coleta, reaproveita e conserva ao longo da vida. Por meio desse repertório material e instrumental, ele se arranja com o que possui, segundo o princípio de que “isto sempre pode servir” e compondo assim um “tesouro de idéias (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 38-40).
Diante do pressuposto descrito, substituiremos o termo bricoleur por designer de interiores. Do sentido explícito, ambos, designer e bricoleur, têm em comum a ação de juntar memórias a partir de montagens de objetos, sejam eles no âmbito material e imaterial. O designer de interiores, como um bricoleur, trabalha abrindo e fechando um baú. Ao tempo em que abre, tem a possibilidade de deixar aflorar o mais sensível do seu cliente, as tessituras de vida que estarão presentes em cada escolha, sejam nas cores das paredes ou em uma simples tomada de canto. Ao fechar este baú, o designer de interiores poderá permitir o silêncio, aquilo que não precisa mais existir no projeto, aquilo que é acordado com os atores/clientes que não mais terão a possibilidade do enxergar o velado pelo designer.
Parece ser complexa a tarefa do designer como um bricoleur. Você pode estar se perguntando: e onde entra o método, o passo a passo a ser seguido e que me levará ao sucesso do projeto executivo? Meu caro designer de interiores/bricoleur, quando nos envolvemos com esse baú de múltiplas complexidades, que adentram nossa prática projetual, somos levados, espontaneamente, a propor uma nova metodologia. Sim, uma nova forma de promover o projeto, pautado num processo flexível, onde ele tem começo, meio e fim, mas não precisará ser seguido à risca. Cabe a você deixar-se levar e ser conduzido(a) pelas descobertas. E não esqueça que, diante do baú, você poderá enxergar um design de interiores nunca visto. É certamente seu ‘além de si’, além dos livros, das receitas, das modas que vão e vêm, das tendências, das etiquetas, do valor mercadológico. É um design de interiores pautado em ser (humano), nas suas premissas, nas suas dobras existenciais e, sobretudo, nas atemporalidades que subvertem processos técnicos e práticas engessadas.
Gostaríamos de convidá-lo a um ritual. Um ritual de perceber o ser designer de interiores. Um ritual que perpassa por imaginar sobre a não definição do que seja design de interiores e vislumbrar qual a imagem ele representaria. Primeiro, esqueçamos as formalidades do que nos foi ensinado. Ratificamos que este artigo é uma fresta que se abriu, um ruído que ainda teima em nosso redor, uma fenda não fechada. É um vestígio. Segundo esse ritual, precisará de você o ato de se despir de seus cacoetes para adentrar na sua dimensão. Cientes dos apontamentos? Sigamos! Qual seria esaa imagem que poderia revelar o design de interiores hoje?
Didi-Huberman (2018) fala que as imagens queimam. Queimam porque em suas cinzas, quando sopradas, ainda restam fogo. Metaforicamente, as flamas que soltam desse sopro seriam as memórias. O design de interiores queima. Nele, há cinzas de um passado colonial que insiste em o definir no presente. Seria o design essas flamas? Mas, perguntemos, e o sopro quem o faz para que possamos detectar o design além do projetual? A quem cabe a ação de soprar? A nós, designers esquematizados pelo sistema europeizado, que finge dialogar com as ditas “culturas periféricas, artesanais e tribais”?Voltemos à pergunta: o design de interiores é flamas?
Parece até redundante, mas o design de interiores queima. Ao soprarmos, o que nos salta é uma casa, um lar, um abrigo. A lógica da imagem não está em ser um interior de piso, parede e teto, entretanto, a imagem condicionada, criada a partir dos sentimentos, sem a preocupação de ser antes concreto. É um ninho. Talvez, um álbum aberto. Um baú, abrindo e fechando. Uma casa-imagem-experiência de muitas percepções:
(…) veremos a imaginação construir “paredes” com sombras impalpáveis, reconfortar-se com ilusões de proteção ou, inversamente, tremer atrás de grossos muros, duvidar das mais sólidas muralhas. Em suma, na mais interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos (BACHELARD, 1993, p.25).
Bachelard apresenta-nos um pressuposto: o espaço imaginado a partir de memórias. Talvez seja o que nos falte pensar, a memória no design de interiores, para enxergarmos o ‘além de sim’. Memórias estas que não revelam somente o passado, todavia, reformulam-no neste presente. Pensemos em memórias como vestígio, assim, pode ser que o design seja respondido como pedaços, cacos, fragmentos utópicos, de uma possibilidade, de algo a ser buscado no agora. Memória-design-agora, de certo, será uma remontagem mnemônica, como nos atesta Assmann (2011), um atlas de imagens disposta, de forma a serem reposicionadas a cada olhar.
Diante dessa memória, é urgente ver o ‘de interiores’ que se une ao design como o figurativo, o termo que sedimenta/alimenta o fluir do Campo, a essência que parece perdida. O ‘de interiores’, neste caso, revela não só o concreto, mas como nos disse Bachelard (1993), o espaço imaginado sobre os sonhos, o pensamento. Assim, completamos, sobre as memórias nossas que projetamos com tanto afinco, mesmo propondo para o outro, e com nossas malas repletas de simbologias; e sobre as memórias dos nossos clientes, que se tornam o basilar para a concretização do projeto. Não esqueçamos que o ‘de interiores’ carrega não somente as marcas das nossas mãos, que fazem e ficam no projeto, do croqui inicial até a entrega do projeto executivo, mas também nossas memórias, atreladas à criatividade e às nossas constantes buscas.
3. Sobre o hoje, o ser de si
A capacidade de olhar através do tempo em direção à eternidade, e de reproduzir o que foi visto desse modo, tornou-se relevante, no mais tardar, a partir do terceiro milênio. Era a época em que as pessoas iam para o alto das montanhas mesopotâmicas, olhavam em direção à nascente dos rios e podiam prever secas e inundações, e depois traçavam linhas em plaquetas de argila para representar os canais que deveriam ser cavados futuramente. Naquele tempo essas pessoas eram consideradas profetas, mas hoje em dia preferível chamá-las de designers (FLUSSER, 2013, p. 189).
Fig. 3. Vista frontal/lateral da Casa da Flor. São Pedro da Aldeia, Rio de Janeiro. Fotografia de Nelson Kon.
Fonte: http://www.nelsonkon.com.br/casa-da-flor/
Ao mesmo tempo que a escrita desse texto foi surgindo, fomos acompanhados de imagens que cavoucaram nossas imaginações. Imagens que nos tiraram do lugar-comum. Que nos colocaram em outros espaços.
As quatro imagens apresentadas na abertura de cada seção tratam-se da obra do que poderemos chamar de designer de interiores-bricoleur. Uma casa que foi sonhada em 1912 e executada, a passos lentos, cerca de 62 anos, por Gabriel Joaquim dos Santos, filho de uma mulher indígena e de um ex-escravizado. A casa fica sobre um morro em São Pedro da Aldeia, no estado do Rio de Janeiro. Gabriel, com a ânsia de deixar fluir/fruir a imaginação, utilizou-se restos de construções, pedaços de vidros, porcelana, cerâmica, lâmpadas, conforme podemos identificar nas imagens. Ancoradas em madeiras roliças, as paredes de taipa ganharam arabescos, ornamentos em mosaicos que levam a imagem da flor, símbolo que nomeia a casa e potencializa a dinâmica de feitura do bricoleur Gabriel.
Se imaginarmos a flor constituída por pedaços/pétalas que lhes dão forma e sentido, a Casa da Flor, a partir de seus inúmeros fragmentos, carrega essa pureza da figura e do sentimento. É imbricada por memórias de tantas pessoas, vivências que não estavam ao alcance do autor. Gabriel juntou tantos cacos e fez um todo grandioso, que nossa imaginação não consegue alcançar a potencialidade e magnitude desse devir-conceitual, e que nos leva a creditar na concepção projetual do designer de interiores o ato de tecer memórias. É isso, o designer de interiores costura poesia, tempo e memórias!
Gabriel, neste caso, não foi aqui apresentado como ilustração, mas como um escape de nossas acepções/construções arraigadas, a priori, nos métodos e nas receitas. Gabriel, aqui, não é um mero sonhador de um interior, mas a imagem do designer de interiores, sob todas as possibilidades projetuais. Um homem que, revertendo a lógica das metodologias, fez do seu sonho e das memórias alheias a materialidade de um espaço, que nos vislumbra a dizer: é a memória do ‘de interiores’ do design que é feito em pedaços. Assim, esperamos que o projeto da Casa da Flor, ou a imagem dos fragmentos desse interior, sonhado e feito de imaginação e memórias, torne-se mais um elemento para que reflitamos o que é este design de interiores além dele mesmo.
Da Casa da Flor à reflexão. Sim, refletir sobre a ação projetual do designer de interiores, evoca a urgência para as premissas das memórias que incrustam a ideia, o projeto, o produto, o projetista, os processos. É uma parte ‘do além de si’. No cerne desta acepção, imergir nas camadas fundas que trazem à tona um designer que enxerga esse além, que realiza bricolagem de histórias suas com as de seus clientes, que não se prende às crenças e encara a hipocrisia estrutural, sinalizada por Cipiniuk (2017), certamente, é o designer que entende que projeto, ou construir interiores, não é somente desenhos e nem fórmulas, mas envolvimento, simbiose, produção de vestígios. Nisso, ratificamos: o designer de interiores sempre foi, é e será um bricoleur.
Voltando na tessitura do tempo, numa compreensão de uma memória projetual, a ideia desenvolvida por Lévi-Strauss cabe muito bem com nosso apontamento: pensar a bricolagem como uma possibilidade de os designers de interiores entenderem a dimensão de seus trabalhos, os arredores que o constituem. “O que há, então, para se ver?” (BECCARI, 2020, p. 7). Neste propósito conceitual de Lévi-Strauss e Beccari, corroboramos que o designer-bricoleur seria aquele que “(…) trabalha com as suas mãos, utilizando meios indiretos se comparados com os de artista” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 32), enxergando tudo. No sentido, o trabalho do designer de interiores, assim como o do bricoleur, voltar-se-á para um apanhado de resíduos de obras humanas, que o fará interpretar o intermediário entre a imagem e o conceito, como signos em que “(…) os significados se transformam em significantes e vice-versa” (LÉVI-STRAUSS, 1952 apud FOSTER, 2021, p. 167), ou seja, o designer de interiores como bricoleur, como Gabriel, é aquele que, ao entender o ‘além de si’, junta os cacos, as lâmpadas, as cerâmicas, os pratos quebrados, tudo em favor de um projeto, espaço, interior que revele o estético, o sensível e o mnemônico.
Diante da bricolagem, o designer terá a possibilidade de se conectar com outras experiências, não descartando nenhuma informação. Aqui enfatizaremos como memórias-vestígios que, certamente, enriquecerão seu processo construtivo. Consideremos, neste cenário, que o designer de interiores terá em suas mãos a possibilidade do mergulho em camadas que vão além do projeto pautado na resposta de uma metodologia requisitada. Lembramos que não estamos descartando o sentido e a importância das metodologias na configuração do Campo do Design, mas nos convém o alerta de que o design não se faz, necessariamente, de metodologias, vistas como reprodutivas. O design é possível de ser construído em vieses que o condicionam a localizar o “por trás” de seus valores (FLUSSER, 2013), o além da arte e da técnica, sem a preocupação da demarcação arte versus design. Simplesmente ele é design de interiores que se constitui de tessituras ideais, projetuais e mnemônicas.
Acrescentamos que, como bricoleur, o designer de interiores é um criador. Ele entende como e por qual caminho o espaço deverá ser materializado. Ele sabe que este mesmo espaço, constituído a partir das relações poéticas e temporais, foi feito para ser interpretado, assim como nos atenta Latour (2014, p. 6), “(…) na linguagem dos signos (…). Sempre que você pensa alguma coisa como design, você traz todas as ferramentas, habilidades e perícias da interpretação para a análise dessa coisa (…)”. Logo, diante desse construto de ideias, voltando à acepção de Lévi-Strauss (1989), o projeto de interiores, atrelado às perspectivas da poética, do tempo e da memória, tornar-se um grande atlas, como uma grande folha preta cheia de imagens colhidas desde o primeiro contato com seu cliente. Ali, naquela prancha escura, estão dispostas imagens/fragmentos, que poderão ser deslocados, relocados, possibilitando a criação de muitas outras narrativas, que logo se constituirão em superfícies. É como se o designer estivesse diante de uma cristaleira de seu/sua cliente, que carrega a memória de outras gerações. O desafio não está em repaginar o móvel, nem o acoplar no layout a outros objetos. O desafio está em como manter ativa a memória do que aquilo foi, sem descaracterizar, velar a essência e a potência simbólica que o artefato pode trazer ao espaço. O designer-bricoleur, decerto, possui o epítome desse ato-gesto-projeto, que se tornará ‘aprojestual’, num intenso continuum.
Fig. 4. Bricolagem do símbolo da Casa da Flor. São Pedro da Aldeia, Rio de Janeiro. Fotografia de Nelson Kon.
Fonte: http://www.nelsonkon.com.br/casa-da-flor/
Talvez esse artigo tenha dito muito. Dito o que aparentemente é provável. Dito o que possa causar um ruído. Dito o que todos já sabem. Dito o desconhecido. Talvez valesse apenas reescrevê-lo exemplificando-o mais, tornando-o mais didático. Talvez!
Preferimos crer que a tessitura aqui se fez no seu desejo, na simbiose entre o estranho e o real. Entre as palavras, escolhidas cautelosamente, e o jogo de montagem atemporal. Sim, este texto é um uma busca, um desejo, uma inquietação. É uma bricolagem sobre a composição conceitual do design de interiores. É uma tentativa de elucidar o que esteja além do verbo e do substantivo. É um desvelar.
Este artigo, assim como a feitura de Gabriel Joaquim dos Santos, com sua eterna casa da Flor, é feito de pedaços, cacos, restos de memórias que foram descartadas ao longo de um caminho histórico que força, até os dias de hoje, um design que se repete nas vitrines, nas mostras de decoração, nas imagens maquiadas de bem-estar. Com a bricolagem, eis uma alternativa, uma profícua maneira de desvincularmos dos modismos, da reprodutibilidade, e irmos em busca, novamente, do que largamos no caminho.
Nossas últimas acepções aqui retomam a poética, o tempo e a memória, ratificando-as como o cerne do design de interiores, como o substrato necessário para um percurso metodológico eficaz, mais visceral, experienciado, mais ativo e afetivo.
Esperamos que a breve descrição, aqui proposta, abra outras janelas, mostrem-nos outros caminhos, outras formas de colagem, outras possíveis interpretações. Que nos leve a ver/sentir o design de interiores com a mesma empolgação de uma criança ao receber um brinquedo. No gesto infantil, há verdade. Talvez, seja isto que esteja faltando ao design de interiores, ser, por si, e além de si, como uma criança rindo do feito. Por fim, deixaremos as palavras de Bachelard na tentativa de resumir e explicar como realizamos a bricolagem do design de interiores neste texto:
Logicamente, é graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas; e quando a casa se complica um pouco, quando tem um porão e um sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados. A eles regressamos durante toda a vida em nossos devaneios (…). Nesse teatro do passado que é a memória, o cenário mantém os personagens em seu papel dominante. Por vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo; que no próprio passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer “suspender” o voo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço (BACHELARD, 1993 p. 27-28).
Sigamos, então, realizando a bricolagem do design de interiores entre a poesia, o tempo e as memórias do ontem, do hoje e do futuro, talvez!
Mini Biografia
Anderson Diego da Silva Almeida, Doutor em Artes Visuais, com ênfase em História, Teoria e Crítica da Arte (PPGAV/UFRGS). Atualmente, Professor Substituto no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS). Pesquisador da arte e do design nas temáticas da história, memória e cultura material afro-brasileira.
REFERÊNCIAS:
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Paulo Soethe (Trad.). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Antônio de Pádua Danesi (Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BECCARI, Marcos. Das coisas ao redor: discurso e visualidade a partir de Foucault. São Paulo: Almedina, 2020.
CIPINIUK, Alberto. Design: o livro dos porquês: o campo do design compreendido como produção social. Rio de Janeiro: Ed. Puc-Rio: Ed. Reflexão, 2014.
______. O campo do design e a crise do monopólio da crença. São Paulo: Blucher, 2017.
FOSTER, Hal. O que vem depois da farsa? Célia Euvaldo (Trad.). São Paulo: Ubu Editora, 2021.
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
KLEIN, Étienne. O tempo que passa? Cecília Ciscato (Trad.). São Paulo: Editora 34, 2019.
LATOUR, Bruno. Um prometeu cauteloso? Alguns passos para uma filosofia do design. In: AGITPROP: Revista brasileira de design. São Paulo, v. 6, n. 58, 2014. Disponível em: http://www.agitprop.com.br/index.cfm?pag=repertorio_det&id=86&titulo=repertorio&fbclid=IwAR08boBpZQOdPNlnYD47iUuQWmhhAkseHTbnJIN2QVcNnbVtFQC91WODdKo. Acesso em: 30 set. 2021.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Tânia Pellegrini (Trad.). Campinas, SP: Papirus, 1989.