Categories: Edição 06

Reflexões sobre o ensino de projetos de design de interiores

Reflexões sobre o ensino de projetos de design de interiores

Autora

Maria Laura de Almeida Camargos

Resumo

 Os problemas e as inter-relações advindas de um projeto de design de interiores são inúmeros e imprevisíveis, o que coloca o professor das práticas de ensino de projetos diante de desafios constantes. Os saberes racionais não são suficientes para enfrentar a complexidade das situações de projeto, sendo necessária a articulação de um conjunto de conhecimentos abrangentes, didáticos e transversais, sendo construídos ao longo da experiência do professor numa formação contínua. Este artigo discute as disciplinas de projetos dos cursos de design de interiores como possibilidade de um ambiente favorável para o desenvolvimento de um pensamento reflexivo, o ensino enquanto oportunidade de permanente crítica através de uma relação analítica com a ação. Considerando as diversidades inerentes a este universo, não se pretende neste trabalho analisar as metodologias utilizadas, nem estabelecer quais seriam legítimas, mas apontar a prática reflexiva como estratégia capaz de sedimentar o conhecimento, que é consolidado quando o aluno dele se apropria. Ao final, questiona os critérios de avaliação adotados nestas práticas de ensino, quando se acirram as dificuldades a partir de uma postura reflexiva. Dada a extensão do tema proposto e a necessidade de constante pesquisa, o artigo é concluído trazendo questões que convidam a um diálogo sobre o ensino de projetos, se propondo a gerar mais possibilidades e menos verdades.

Palavras chaves:

Ensino – Design de Interiores – Disciplinas de projetos – Pensamento reflexivo – Métodos avaliativos

Abstract

 The problems and interconnections arising from an interior design project are innumerable and unpredictable, which puts a professor of project practices through constant challenges. Rational knowledge is not enough to face the complexity and diversity of projects, requiring the articulation of a set of comprehensive, didactic, and transversal knowledge, built throughout the professor’s experience in continuous training. This article discusses project-oriented disciplines in interior design courses as a possibility of a favorable environment for the development of reflective thinking, and teaching as an opportunity for permanent evaluation through an analytical relationship with action. Considering the diversities inherent to this field, this work does not intend to analyze the main methodologies used, nor to establish which ones would be legitimate, but to point out the reflective practice as a strategy capable of constructing knowledge, which is consolidated when the student takes personal hold of it. Finally, it is proposed to question the evaluation criteria adopted in these teaching practices, which gain greater complexity from the reflective attitude. Given the scope of the proposed theme and the need for constant research, the article concludes by bringing questions that invite a dialogue about project teaching, proposing to bring more possibilities and less truths. 

Keywords: Teaching – Interior Design – Project disciplines – Reflective thinking – Evaluative methods.

Introdução

 A atividade de ensino não é configurada necessariamente em um ambiente reflexivo. De acordo com o sociólogo suíço Philippe Perrenoud, todos nós refletimos na ação e sobre a ação, o que necessariamente não nos torna profissionais reflexivos. “É preciso estabelecer a distinção entre postura reflexiva do profissional e a reflexão episódica de todos nós sobre o que fazemos” (PERRENOUD 2002, p. 13). Segundo o autor, para alcançar uma verdadeira prática reflexiva, é necessário estar inserido em uma relação analítica com a ação, que não pode ser desvinculada do conjunto da prática profissional. O autor postula que somente o formador reflexivo “utiliza a reflexão de forma espontânea em torno de uma pergunta, de um debate, de uma tarefa ou de um fragmento de saber” (PERRENOUD 2002, p. 13).

 O professor e pesquisador francês Jean-Claude Forquin acrescenta que todo questionamento ou crítica envolvendo a natureza dos conteúdos ensinados, sua pertinência, utilidade, interesse, valor educativo ou cultural, “constitui para os professores um motivo privilegiado de inquieta reação ou de dolorosa consciência” (FORQUIM, 1993, p. 9). A partir deste raciocínio, poderia se supor que a atividade de ensinar provoca intrinsicamente, uma disposição para a análise e reflexão. Ainda segundo o autor, a transmissão de conhecimentos, competências, hábitos e valores “nos precede, nos ultrapassa e nos institui enquanto sujeitos humanos e pode ser nomeada por cultura” (FORQUIN, 1993, p. 10).

 Para melhor elucidar as questões que se impõem neste cenário, o artigo apresenta inicialmente algumas construções teóricas acerca da formação de um profissional reflexivo. À luz destes conhecimentos discute, em seguida, o ensino da prática projetual nos cursos de design de interiores como sítio para a construção do pensamento reflexivo, a partir da transferência de saberes fundamentada em ações que privilegiam o raciocínio, a imaginação, a cooperação e o senso crítico para a formação de novas competências. A relevância dessa disciplina no curso de design de interiores revela-se ao aglutinar variados conteúdos ministrados durante todo o percurso, em uma experimentação teórico-prática, fundamento para uma atuação profissional efetiva (BAHIA et al., 2016). Por fim, o estudo discute a complexidade dos critérios avaliativos nas disciplinas de prática projetual, dificuldade ampliada quando se assume um habitus profissional reflexivo na condução e orientação dos projetos. A arquiteta e professora Maria Lúcia Malard contribui para esta discussão, ao apontar a intricada função dos docentes, uma vez que suas referências pessoais e profissionais atravessam o processo avaliativo, associadas às ações de interpretação e julgamento.

“Interpretar é compreender, para então julgar. A interpretação pressupõe a compreensão e essa só se dá a partir de certas referências, que se constituem nos nossos pressupostos. Só compreendemos, portanto, o que conhecemos, daí a derrubada do mito da originalidade. Só julgamos a partir dos nossos pressupostos, daí a derrubada do mito da isenção” (MALARD, 2007, p. 2).

O ensino reflexivo

 Segundo Perrenoud (2002), a prática reflexiva não é medida por discursos ou por intenções, mas pela natureza e consequências da reflexão no exercício cotidiano da profissão. “No desenvolvimento da postura reflexiva, é preciso formar o habitus e favorecer a instalação de esquemas reflexivos” (PERRENOUD, 2002, p.81). Para o sociólogo francês Pierre Bordieu, o habitus pode ser entendido como um operador, uma matriz de percepção e não uma identidade ou uma subjetividade fixa. “Sendo produto da história, o habitus é um sistema de disposições aberto, permanentemente afrontado a experiências novas e permanentemente afetado por elas. Ele é durável, mas não imutável” (BORDIEU 2002, p. 83).

 Formar o habitus, na visão de Perrenoud (2002), permite a mediação essencial entre os saberes e as situações que orientam uma ação. “Para pensar a formação de um profissional reflexivo, antes de mais nada, deve-se aprofundar os desafios de formação do triângulo saberes-competências-habitus” (PERRENOUD, 2002 p. 73). As noções de habitus e saberes se articulam com a de competência, trazida pelo autor como “a capacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos visando agir em uma situação complexa” (PERRENOUD, 2002, p. 78).

 Perrenoud (2002) ao articular teorias e métodos de ensino, expõe que “a postura reflexiva mobiliza saberes teóricos e metodológicos, mas não se reduz a eles” (PERRENOUD 2002 p. 81). Afirma ainda que a postura reflexiva não pode ser ensinada ao fazer parte do âmbito “das disposições interiorizadas, entre as quais estão as competências, bem como uma postura reflexiva com o mundo e com o saber, a curiosidade, o olhar distanciado, as atitudes e a vontade de compreender” (PERRENOUD, 2002, p. 81). O autor conclui que diante de situações complexas que exigem ações imediatas, por vezes o professor aciona um esquema de ação construído em função da experiência, que não depende de conhecimentos formais, mas de esquemas de pensamentos e percepção. Para Jean-Claude Forquin a educação escolar não se limita a fazer uma seleção entre os saberes e os materiais culturais disponíveis. Segundo o autor, para que seja efetivamente transmissível, a educação “deve entregar-se a um imenso trabalho de reorganização, de reestruturação, ou de transposição didática” (FORQUIN, 1993, p. 16).

 Segundo o filósofo estadunidense e professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), diferentes tipos de saber sugerem concepções diferentes de ensino prático. “Nossa visão de trabalho do ensino prático e das condições e do processo apropriados a ele depende, em parte, de nossa visão dos tipos de saber essenciais à competência profissional (SCHÖN, 2002, p. 41). Perrenoud (2002) afirma que a prática reflexiva não pode ser entendida como uma prática específica ou um componente autônomo do ofício de professor, tais como “o planejamento de uma sequência didática, a moderação de um conselho de classe, o trabalho a partir dos erros dos alunos ou realização de procedimentos de projeto” (PERRENOUD, 2002, p. 72). A formação de profissionais reflexivos não deve se limitar a apenas implementar um módulo reflexivo. “O professor tem de recorrer a saberes provenientes de sua experiência pessoal, os quais são ainda menos organizados, formalizados e verbalizados que os saberes profissionais” (PERRENOUD, 2002 p. 75). São domínios que não possuem status científico, mas sua validade se sustenta em eficácia na ação, sendo igualmente indispensáveis. Nomeados pelo autor como saberes de experiência, não detém a mesma legitimidade e visibilidade que os saberes eruditos, uma vez não são produzidos pela pesquisa científica. A conexão entre os saberes eruditos e práticos será articulada através do habitus. Assim, muitas das intervenções em sala de aula dependem do habitus, ou seja, destes esquemas interiorizados e construídos ao longo da vida. “Uma das funções da prática reflexiva é fazer com que o profissional tome consciência de seus esquemas” (PERRENOUD, 2002, p. 82).

 Donald Schön contribui com as noções de conhecimento tácito e da “reflexão-na-ação” para melhor elucidar as bases do ensino prático reflexivo. O autor aponta o saber tácito como um conhecimento na ação decorrente de decisões tomadas espontaneamente, sem que sejam declarados as regras e os procedimentos a seguir. Este conhecer-se na ação, segundo Schön (2002), traduz um processo dinâmico que não é verbalizado. A “reflexão-na-ação” implica uma reflexão no meio ou após ação, e o indivíduo pode interferir na situação em desenvolvimento, dando nova forma à ação.

“A reflexão na ação tem uma função crítica, questionando a estrutura de pressupostos do ato de conhecer-se na ação. Pensamos criticamente sobre o pensamento que nos levou a esta situação difícil ou essa oportunidade e podemos, neste processo, reestruturar as estratégias de ação, as compreensões dos fenômenos ou a forma de conceber os problemas” (SHÖN, 2022, p. 33).

 Este processo contínuo pode ser evidenciado em algumas práticas de ensino de projetos e depende basicamente de uma intensa interação reflexiva e crítica entre professor e aluno. “O cenário é estabelecido para um diálogo contínuo de ações e palavras de reflexão recíproca na ação e sobre a ação” (SCHÖN 2002, p. 129). É necessário que o professor estabeleça uma interlocução com o estudante, que “acaba por aproximá-los numa relação mais pessoal, que pode ser de ser de afeto ou de desafeto, dependendo do sucesso do diálogo conseguido” (MALARD, 2007)

“E, como os instrutores de ateliê tem que fazer com que suas próprias abordagens sejam compreensíveis a seus alunos, o ateliê oferece um acesso privilegiado às reflexões dos designers sobre o processo de projeto. Ele é, ao mesmo tempo, um exemplo vivo e tradicional de ensino prático reflexivo” (SCHÖN, 2002, p.45).

O ensino de projetos

 Ao trazer estas considerações para as disciplinas de projetos de design de interiores, algumas questões são evidenciadas. O complexo cenário atual exige a proposição de novos modelos metodológicos capazes de desenvolver uma postura participativa dos alunos no desenvolvimento dos projetos, ao fortalecer as oportunidades de constante discussão e pesquisa.

 Dessa forma, nas disciplinas de ensino de projetos, sob a orientação de um professor, é apresentado ao aluno o projeto a ser desenvolvido, sendo utilizadas metodologias e diretrizes capazes de melhor estruturar e avaliar processos e produtos. Ainda que não caracterize o desenvolvimento de projetos palpáveis, engendra a materialização do pensamento e os desdobramentos compreendidos na solução dos problemas. São disciplinas consideradas como a espinha dorsal dos cursos de design de interiores ou design de ambientes (DIAS, 2004; BAHIA et al., 2016). Ambas as nomenclaturas são utilizadas nas universidades brasileiras.

 Pretende-se, portanto, que a ação de projetar em sala de aula permita ao aluno, capacidade de apreensão do conhecimento e aprendizagem. “Como já vimos, uma parte significativa do que um estudante iniciante em uma prática com caráter de design precisa aprender, não pode ser entendido por ele antes que comece a produzir design” (SCHÖN, 2002, p. 127). Os estudantes aprendem fazendo, ainda que sua atividade fique longe do mundo real do trabalho. O projeto será aprendido, portanto, através do fazer, tanto no aspecto do ambiente construído mais restrito, quanto na subjetividade das relações envolvidas no processo, em uma visão holística e sistêmica (BAHIA et al., 2016).

 De acordo com Schön (2002), “o processo do design, em sentido mais amplo, envolve complexidade e síntese” (SCHÖN 2002, p. 43) e lida com variáveis e limites, algumas conhecidas desde o início, outras descobertas ao longo do percurso. “Quase sempre, as ações dos designers têm mais consequências do que as pretendidas por eles. Eles jogam com variáveis, reconciliam valores conflitantes e manobram em torno de limitações (…)” (SCHÖN 2002, p. 43).

 Schön (2000) elenca três formas para o desenvolvimento do ensino prático: a primeira considera o treinamento técnico, no qual o instrutor comunica e demonstra a aplicação de regras e operações aos fatos da prática; a segunda forma de ensino prático diz respeito a um modelo de pensamento passado pelos profissionais capacitados, no qual presume-se uma resposta certa para qualquer situação ou uma terceira maneira ainda, em que o saber profissional é ensinado como uma “reflexão-na-ação”. Segundo Schön (2002), nesta última forma, os professores se deparam com situações incertas, únicas e conflituosas próprias da prática; os estudantes aprenderão um tipo de reflexão, construindo e testando novas categorias de compreensão, estratégias de ação e formas de conceber problemas. “Os instrutores enfatizarão zonas indeterminadas da prática e conversações reflexivas com os materiais da situação” (SCHÖN, 2002, p.41). Para o autor não caracteriza surpresa se alguma confusão ou enigma reinarem nas fases iniciais de um ateliê de projetos ou de qualquer outra prática reflexiva (SCHÖN, 2002). Uma das funções da prática reflexiva é exatamente permitir que os professores tomem consciência de seus esquemas de pensamento e percepção e articulem seus saberes.

Vários pedagogos aludem ao professor como “um inventor, um pesquisador, um improvisador, um aventureiro, que percorre caminhos nunca antes trilhados e que pode se perder caso não reflita de modo intenso sobre o que faz e caso não aprenda rapidamente com a experiência” (PERRENOUD, 2002, p.13).

 Portanto, na trilha da construção projetual situações fora da rotina podem surgir durante a prática e exigem profissionais capacitados a propor um tipo de coerência a situações complexas, oportunizando resultados inesperados e um novo significado, refazendo sua concepção do problema.

“É essa junção de concepção do problema, experimentos imediatos, detecção de consequências e implicações, resposta à situação e resposta à resposta que constitui uma conversação reflexiva com os materiais de uma situação, o talento artístico com caráter de design, de uma prática profissional” (SCHÖN, 2002, p. 124).

 A partir deste raciocínio, pode-se supor que o desenvolvimento de projetos ultrapasse a habilidade de solucionar problemas, metodologia corrente nas práticas projetuais. Schön (2002) propõe uma visão diferenciada daquela proposta por Herbert Simon. Adverte que ainda que a fundamentação teórica do projeto desenvolvida na obra de Simon seja considerada pioneira por diversos autores, o projeto é tido apenas como um processo instrumental de solução de problemas, uma visão que ignora as funções fundamentais de projetar em situações de singularidade, incertezas e conflitos. Diante do cenário complexo imposto pelas inúmeras transformações observadas na sociedade atual, a metodologia do design voltada para a resolução de problemas da indústria e do mercado não responde à necessidade de uma proposição de soluções a partir de um paradigma sistêmico (BAHIA et al., 2016 apud CARDOSO, 2013).

 Ao articular ensino de projetos à reflexão sobre a ação de projetar, Schön (2002) aponta que não há demonstração que “capacite um estudante para fazer a próxima invenção ou descoberta, sem que se engaje em sua própria versão de reflexão-na-ação, porque o processo descrito ou demonstrado diz respeito a ver e fazer algo de uma maneira nova” (SCHÖN, 2002, p. 126). Sendo assim, estas atividades de ensino prático são reflexivas se permitirem aos estudantes tornarem-se aptos a um tipo de “reflexão-na-ação” estando subjugadas à maneira em que professor e aluno se relacionam com este processo. “Elas são reflexivas, como veremos, no sentido de que dependem, para sua eficácia, de um diálogo, reciprocamente reflexivo entre instrutor e estudante” (SCHÖN, 2002, p. 42). E quando o diálogo funciona bem, ele toma a forma de reflexão-na-ação recíproca. Nesse sentido, o professor reflete sobre sua própria performance, sendo suas intervenções experimentos imediatos e o estudante reflete sobre os significados que vê e ouve. “E, para fazê-lo, adota um tipo particular de postura – assumindo responsabilidade por sua própria educação naquilo que precisa aprender e, ao mesmo tempo, permanecendo aberto à ajuda do instrutor” (SCHÖN, 2002, p. 128).

 Nesta lógica, a transmisssão de saberes no desenvolvimento de projetos de design de interiores ultrapassa conteúdos previamente estruturados, sendo exigido que o professor faça um avanço em sua capacidade de provocar no estudante uma habilidade crítica na problematização das situações de projeto. Pode-se supor que a postura reflexiva suscite, a partir de uma maior aproximação e interação do aluno diante de seu projeto, possibilidades verdadeiras de internalização do conhecimento. Bahia et al. (2016) apoia essa reflexão ao discorrer que processos participativos possibilitam autonomia, análise crítica e uma aprendizagem mais efetiva na formação do aluno. O diálogo e a cooperação são a base para a construção de novos percursos e processos de design.

 O estudante poderá, dessa maneira, aprofundar a compreensão do projeto ao participar da relação dialógica e ampliar sua capacidade para projetar. Segundo Shön (2002), à medida que o estudante experencia a reflexão-na-ação do diálogo, aumenta sua capacidade de tirar, do diálogo, lições úteis para projetar. E em uma ação correspondente, “quanto maior for sua competência para o design, maior será a sua capacidade para a reflexão-na-ação do diálogo” (SHÖN, 2002, p. 129). Fundamentalmente, quando alguém aprende uma prática, ele é iniciado no ambiente da comunidade profissional ali inserida, aprendendo sua linguagem, repertório de modelos e conhecimento sistematizado. Para Shön (2002), com o passar do tempo, os alunos criam seus próprios rituais nas sessões de avaliação de projetos, nas apresentações para bancas, todos ligados a um processo central de aprender através do fazer. A reflexão analítica atravessa o processo projetual, inaugurando uma nova postura do aluno.

 Contudo, apesar de um cenário oportuno para o estabelecimento de uma prática reflexiva nas aulas de projeto, desvios podem ser observados. “Esses desvios são particularmente frágeis no caso das dimensões reflexivas, pois são mais difícéis de “programar” do que os ensinos temáticos” (PERRENOUD, 2002, p. 80). Muitas das vezes, os professores encontram-se diante de incertezas e os métodos não garantem um campo de ação totalmente seguro para o ensino. Como destaca Bordieu (2022), o conhecimento de princípios ou de regras podem deixar lacunas na maneira e no momento oportuno para aplicá-los. “Em que nos baseamos para decidir que um determinado saber é pertinente em determinada situação?” (PERRENOUD, 2002, p.73). Para o autor, uma parte dos professores universitários não investem na formação prática reflexiva por diversos fatores, sendo destacados nesse trabalho os seguintes:

– não aderem a ela nem intelectual nem ideologicamente;

– não são profissionais reflexivos;

– não tem tempo para estimular a reflexão, pois são pressionados a transmitir o maior número de saberes;

– imaginam que a reflexão seja algo automático, que ela está presente na capacidade de abstração ou em uma formação de pesquisa.” (PERRENOUD, 2002, p. 80).

 Perrenoud (2002) aponta ainda perdas concernentes à postura do próprio aluno. “Parte dos estudantes não gosta de refletir, ou seja, prefere absorver e restituir saberes; isto é o que o ofício de aluno – que os levou à universidade – os habituou a fazer sem questionar muito” (PERRENOUD 2002, p. 80). Acrescenta que estes alunos resistem a uma reflexão que exija um maior envolvimento pessoal que os obrigue a correr mais riscos, inclusive, no momento de suas avaliações. Nesse processo, Schön (2002) aponta alguns sentimentos que podem ser vivenciados pelos estudantes como perda de controle e confiança que podem levar a sentimentos de vulnerabilidade e dependência; circunstâncias que podem torná~los defensivos. Escapar dos impasses da aprendizagem “depende da habilidade do instrutor de refletir e encorajar a reflexão sobre o próprio diálogo instrução/aprendizagem” (SCHÖN, 2002, p. 131). Nesta perspectiva, os alunos seriam encorajados a interagir de forma genuína com seus projetos, distanciando-se de mecanismos lineares tais como a imitação das ações dos professores. Os professores, por sua vez, deixariam de cercear problematizações e conexões construídas por seus alunos, ao não entregar as soluções dos problemas dos projetos, comumente vivenciada nas aulas de prática projetual.

Métodos de avaliação

 O ensino de projetos é caracterizado como um processo individualizado, já que exige do professor atenção específica à aprendizagem de cada aluno, mesmo que o trabalho seja desenvolvido em grupo. Conforme elucidado, exige um diálogo intenso entre professor e o estudante e pode transcorrer com êxito ou pode ser prejudicado por perdas e dificuldades se a reciprocidade da “reflexão-na-ação” for, de alguma forma comprometida. Considerando toda a subjetividade inerente a este processo, ampliada em ambientes de projetos em que a postura reflexiva se faz necessária, como não tornar a avaliação redutível a um conjunto de preceitos engendrados em um nivelamento formal?

 Avaliar não é tarefa fácil e não poderia deixar de estar diretamente implicada no processo reflexivo, traduzindo incertezas e angústias frequentes na avaliação dos projetos dos alunos. Portanto, quais critérios avaliativos utilizar? Perrenoud (1998) alerta para os riscos de uma avaliação tradicional pautada em critérios pré-estabelecidos. “As grades de critérios têm o mesmo efeito quando estruturam o ensino em vez de serem instrumentos de leitura ex post da experiência e dos conhecimentos dos alunos” (PERRENOUD 1998, p. 71).

 Questões se impõem sobre o processo avaliativo de ensino de projetos de design de interiores e suscitam divergências. Deverão ser utilizados os mesmos parâmetros de exigências na fase do desenvolvimento do processo do projeto como em seu produto final? Processo e produto são plataformas indissociáveis na avaliação de uma prática projetual, mas como proceder quando estas duas etapas se mostram incongruentes e dissociadas? E, aos alunos que se esquivam de uma postura crítica e reflexiva diante de seus projetos, como podem os professores direcionar sua avaliação? Na delicada e difícil avaliação dos projetos dos alunos, indagações outras se impõem como a grande heterogeneidade entre os alunos encontradas em salas de aulas. O que fazer diante de um cenário tão diverso nos ambientes de ensino de projetos?

 Bordieu (2015) denuncia que o sistema educacional, ao atribuir aos indivíduos um desenvolvimento escolar estritamente dimensionado por sua herança cultural e sob as aparências de uma equidade formal, contribui para acirrar e legitimar as desigualdades sociais. As escolas levam os alunos menos favorecidos a perceberem como inaptidões naturais, aquilo que é consequência de uma condição social. O autor complementa que ao tratar todos os alunos, por mais desiguais que sejam, com igualdade de direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar a sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura.

“(…) as crianças originárias de um meio pequeno-burguês (…) não podem adquirir, senão penosamente, o que é herdado pelos filhos das classes cultivadas: o estilo, o bom-gosto, o talento, em síntese, essas atitudes e aptidões que só parecem naturais e naturalmente exigíveis dos membros da classe cultivada, porque constituem a “cultura” (…) dessa classe” (BORDIEU 2015, p. 61).

 Torna-se essencial alertar e provocar alguns docentes a rever os parâmetros avaliativos utilizados, respeitando os diferentes repertórios de seus alunos, sem que a conduta dos professores reforce uma escala de valores que privilegia determinados estudantes mais favorecidos em sua bagagem cultural.

“Não há indício algum de pertencimento social, nem mesmo a postura corporal ou a indumentária, o estilo de expressão ou o sotaque, que não sejam objeto de “pequenas percepções” de classe e que não contribuem para orientar – mais frequentemente de maneira inconsciente – o julgamento dos mestres.” (BORDIEU 2015, p. 61).

 Uma última pergunta se refere às bancas de avaliação de projetos, frequentes nos cursos de design de interiores. Seriam essas bancas instrumentos adequados para mensurar o desempenho do aluno? Exaustão e angústia podem ser observadas entre os alunos, que se sentem prejudicados nestas formas de avaliação. Perrenoud (1998) alerta que “em torno da avaliação se estabelecem competições, estresse, sentimento de injustiça, temores em relação aos pais, ao futuro, à autoimagem” (PERRENOUD, 1998, p. 68). As bancas examinadoras são caracterizadas por ambientes que estimulam ou limitam a capacidade de criação e aprendizagem dos alunos? Tais questões denunciam a dificuldade dos critérios avaliativos em ambientes de ensino de projetos e aludem à necessidade de reflexão e discussão constantes. “É necessário, em qualquer estratégia de inovação, levar em conta o sistema e as práticas de avaliação, integrá-los à reflexão e modificá-los para permitir a mudança” (PERRENOUD, 1998 p. 75).

Considerações finais

 Questões complexas concernentes às disciplinas de prática projetual suscitam investigação e pesquisa dentro das universidades. Como ultrapassar os conteúdos previsíveis e trazer uma abordagem reflexiva no ensino de projetos? É importante a continuidade de pesquisas em torno das metodologias utilizadas, sejam nas universidades públicas ou privadas. A disciplina de prática projetual, repleta de facetas e imersa em subjetividades, por vezes difíceis de serem codificadas nas salas de aula exige constante investigação científica e discussão.

“O desafio de uma ligação explícita ao paradigma reflexivo é complexo, pois se trata, ao mesmo tempo, de ampliar as bases científicas da prática, onde elas existem (…) e de desenvolver formações que articulem racionalidade científica e prática reflexiva, não como irmãs inimigas, mas como duas faces da mesma moeda” (PERRENOUD, 2002, p.16).

 Nos cursos de design de interiores, em que é relevante o processo de aprendizagem no fazer, se faz necessário conciliar os conhecimentos técnicos às questões complexas e intangíveis às quais o design de interiores se depara na atualidade. O século XX trouxe, sem dúvida, a profissionalização da atividade e ampliação do campo de atuação e das responsabilidades dos designers de interiores (BARBOSA et al., 2020). Torna-se desafiador inventar um “casamento viável entre ciência aplicada e talento artístico, ensino em sala de aula e ensino prático” (SCHÖN 2002, p.133).

 Há que se considerar ainda a realidade acadêmica atual, assolapada por demandas de mercado, com salas de aula repleta de alunos ou no formato de ensino à distância. Como estabelecer uma metodologia assertiva em disciplinas de práticas projetuias, capaz de despertar nos alunos a curiosidade, a capacidade de análise em estabelecer conexões e inferências, quando o tempo disponível de atendimento para casa aluno é insatisfatório ou as dificuldades de orientação de projetos concernem à forma remota de ensino?

 Por fim, ficam os docentes provocados a repensar sua prática diária das salas de aulas de prárica projetual, ao lidar com um conhecimento que só pode ser provocado a partir de uma relação reflexiva com o projeto. Nesta perspectiva, o saber jamais se constrói de maneira linear, “(…) há antecipações, retrocessos, reconstruções intensivas e fases de latência” (PERRENOUD, 1998, p. 71). Na medida em que os professores se propuserem a observar, descrever, analisar, interrogar, experimentar, levantar hipóteses em uma relação dialógica com o aluno, permitirão aos estudantes estabelecer conexões com o mundo em que habitam. A apreensão do conhecimento se torna possível quando os professores abraçam o desafio de despertar o interesse de seus alunos, pelo sentido que o conhecimento pode dar à realidade de cada um, pela cooperação e compartilhamento de resultados que suscita, e, principalmente pelo crescimento pessoal e pela satisfação provocada. Pode-se, neste sentido, discorrer de um conhecimento adquirido e permanente, ao gerar competências para a inovação.

Referências:

BAHIA, Izabela Pontello et al. Prática projetual em design de ambientes: relato de experiência sobre a inserção da metodologia aplicada à complexidade. 12° Congresso Brasileiro de Pesquisa e Design. Blucher Design Proceedings, v. 9, n. 2, 2016

BARBOSA, Paula Glória; REZENDE, Edson Carpintero. O que é o Design de Interiores? Estudos em Design, v. 28, n. 1, p. 53 – 64, 2020.

BOURDIEU, P. A Escola Conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. Escritos de Educação. 16 ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

FORQUIN, Jean-Claude. Escola e Cultura: as bases sociais e epistemológica do conhecimento escolar. Trad. Guacira Lopes Louro, Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. 205p.

Maria Laura de Almeida Camargos

Designer de interiores, arquiteta e terapeuta ocupacional, especialista em Gestão Estratégica de Negócios,mestre em Design pela Escola de Design-UEMG, é coordenadora acadêmica da ABD Minas Gerais.Professora em design de interiores desde 2009, atua em escritório próprio há 25 anos.

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