O presente artigo demonstra a forma pela qual o design de interiores constrói o útero da arquitetura, qualificando-o para que melhor possa atender as necessidades de seus usuários e a função a ele destinada. A construção do espaço interior da arquitetura define o stimmung do espaço, ou seja, a sua atmosfera, a forma pela qual os seus usuários irão decodificá-lo e entender o seu significado. Arquitetura, design de interiores e decoração são indissociáveis, juntos constroem o habitat humano, de forma a oferecer a este saúde, conforto e alegria.
Palavras-chave: Design de interiores, Decoração, Stimmung.
A Arquitetura e o Design de Interiores constroem juntos os espaços do hábitat humano, que a decoração se incumbe de personificá-lo. Desta forma, é inimaginável desconectar-se uma área da outra, ou construir conhecimentos na área de forma compartimentada, visto que quando se constrói o volume arquitetônico, se acaba por delinear o espaço do design de interiores que, quando ocupado, é personificado pela decoração. Sendo assim, a arquitetura se incumbe da construção do volume arquitetônico, o design de interiores tem por função qualificar e requalificar o seu espaço, e a decoração, o personifica. Desta forma, melhor se pode compreender a abrangência de cada área, assim como a atuação de seus profissionais, minimizando a celeuma estabelecida no mercado da construção civil oriunda da indefinição da especificidade de cada área da construção civil.
Ao analisar a história da Arquitetura, pode-se constatar que em diversos períodos históricos muitos arquitetos, além de incumbirem-se do projeto arquitetônico, também acabaram por projetar os espaços interiores dos edifícios por eles projetados, definindo-os em minúcias, como o fazia Charles R. Mackintosh (1868-1928), chegando a detalhar as pinças da lareira, luminárias, tapetes e mobiliário. Le Corbusier (1887-1965) não o fez diferente, projetou para o interior de seus edifícios uma linguagem compatível com a sua arquitetura, utilizando-se de uma nova concepção espacial, que pronunciou a contemporaneidade; os interiores da Vila Savoye (França, 1929), sem dúvidas, são reflexo de um pensamento uníssono entre arquitetura e design de interiores. A Casa de Canoas, projetada por Oscar Nyemeier (1907), é um excelente exemplo onde os interiores complementam o volume arquitetônico, expressando nestes o traço do arquiteto, a sua ideologia e a sua concepção espacial. Desta forma, estes estetas do habitat humano acabam por unificar a linguagem do volume arquitetônico com a dos seus interiores, tornando o edifício uníssono, personificando o espaço de forma individualizada, buscando a interface entre o volume arquitetônico e seu interior, assim como a relação do edifício com o seu espaço geográfico, o tempo cronológico e os hábitos de seus usuários.
A Arquitetura delineia e delimita o seu espaço interior, é ela que vem a definir se este será ortogonal ou orgânico, a circulação de seus usuários, a sensação espacial; as suas aberturas definirão a sua iluminação e aeração, assim como determinará o eixo de visão de seus usuários. Sendo assim, o Design de Interiores é fruto da concepção arquitetônica, de forma que tem que possuir o seu genoma, revelando a sua origem e o perfil de quem para este foi concebido. O design de interiores constrói o útero da arquitetura, modelando-o para que se adeque aos seus usuários e a função a ele destinada.
A construção do espaço arquitetônico residencial, assim como qualquer outra modalidade espacial, requer este entendimento da impossibilidade de dissociar-se a Arquitetura de seus Interiores e da Decoração que o personifica.
As sociedades primitivas desenvolveram as mais diversas formas de estruturas para suprir suas necessidades de abrigo e proteção, protegendo-se das intempéries, dos ataques de tribos inimigas e de animais ferozes. Desta necessidade de proteção nascem as primeiras formas de habitações: cabanas, tendas, iglus. Os interiores domésticos nascem concomitantemente como parte das estruturas destas habitações; muitas vezes resultando em espaços muito frugais e plenamente adequados ao clima ao qual estão inseridos, outras vezes imponentes, expressando o poder de quem para estes foram concebidos.
Avançadas civilizações desenvolveram um estilo próprio de erigir os seus edifícios e seus interiores, tornando-os muito peculiares à civilização que os compôs; revelando os hábitos de quem os utilizaram, a sua cultura, as suas necessidades psicológicas; assim como o seu life style. O design de interiores qualifica o espaço interno da arquitetura, comunicando a sua função; de modo que é impossível imaginar-se uma catedral sem os seus ornamentos, mobiliários e vitrais. O designer de interiores inicia a sua atuação profissional durante a Renascença, com técnicas baseadas na prática de produção estritamente tradicional, aplicáveis às mais diversas formas de pensar a composição dos interiores. Com o desenvolvimento civilizatório, este profissional teve que adaptar-se às novas necessidades estéticas e técnicas de sua clientela, para atender às novas proposições especializadas dos edifícios.
Na pré-história podem-se encontrar os primeiros vestígios decorativos nos interiores das cavernas; as pinturas parietais revelam a necessidade do homem de demarcar o seu território, de modo a comunicar o domínio territorial do espaço. As paredes pintadas, certamente, revelavam que aquele espaço estava ou havia sido ocupado por alguém, um processo etológico de domínio territorial.
Durante as primeiras civilizações permanentes, Egito e Mesopotâmia, o homem percebe que os interiores da arquitetura podem delinear a atmosfera do espaço, e esta pode ser manipulada de modo a ser um importante veículo de comunicação. O stimmung do espaço, ou seja, a atmosfera deste, faz com que se creia estar em um palácio ou templo, um castelo ou uma choupana. Certamente, o stimmung do templo egípcio foi determinante para que a população acreditasse no poder divino do faraó, permitindo a este reger o Egito de forma teocrata. Neste momento histórico, o homem percebe que o stimmung oposto ao meio ambiente é mais apraz aos seus usuários; se externamente a temperatura é muito alta, internamente o edifício deve propiciar frescor; se a região for ensolarada, a luz interna do edifício mais controlada traz mais aconchego aos seus usuários; a monotonia cromática do deserto quando contrastada com os interiores policromáticos dos templos em muito devem ter contribuído para adesão dos fiéis aos templos, pela vivacidade e mistério que este e os seus interiores propiciavam.
Os cânones de composição estabelecidos na arte e na arquitetura greco-romana acabaram por influenciar vários outros estilos por sua beleza e proporção, de modo que outros estilos deles se utilizaram para a composição dos seus espaços. As casas gregas primavam pela composição bem elaborada, sua simplicidade e perfeita adequação climática; enquanto as casas romanas eram ricamente decoradas, ostentando o poder econômico de seu proprietário. Neste período, houve um grande desenvolvimento das artes decorativas, como o trompe l’oeil, uma das primeiras formas de dissimulação espacial. Com a divisão do Império Romano em duas partes, Constantinopla se tornou a capital do império Romano do Oriente (476 – 1453 d.C.), onde houve a fusão da estética do ocidente com a do oriente. Neste período, a beleza e a limpeza formal dos antigos cânones gregos foram substituídas pela imponência e riqueza dos materiais e pelo uso excessivo do ouro, que conotava toda a riqueza do império.
Os interiores europeus medievais (século XII ao XV), assim como a arquitetura desenvolvida no período, foram reflexos das incertezas ocasionadas pelo colapso do Império Romano e a peste Negra, que dizimou quase um terço da população europeia. A limpeza formal do período, assim como a rigidez de suas formas, demonstra a descrença de uma solução que não divina; sendo assim, os arcos ogivais, como duas mãos em clemência, apontam para o céu de modo a elevar os pensamentos para Deus.
O renascimento italiano (século XV ao XVII) assinalou a transição da Idade Média para o mundo moderno. Renascimento significa recomeço, quando a população europeia buscava esquecer-se dos problemas da Idade Média e procurava uma situação socioeconômica e cultural que possibilitasse uma estabilidade emocional. Às busca psicológica desta estabilidade, mesmo que de forma inconsciente, recorreu-se aos ideais clássicos greco-romanos. Durante os séculos XVII ao XVIII, houve a busca pelo rompimento dos cânones classicistas do movimento renascentista e o desenvolvimento do estilo Barroco, que propiciava aos espaços uma composição com exuberância dos ornatos, a assimetria, o movimento, a imaginação, o contraste, a dramaticidade. O barroco vem de encontro à vontade de impressionar, de impor-se frente ao forte apelo emocional, que muito bem foi utilizado nos interiores franceses. O estilo Rococó (século XVIII) é uma evolução do estilo Barroco, com um pouco mais de leveza e requinte, com o uso exagerado do dourado, das formas em volutas, conhecido na França como Luís XV.
No início do século XVIII, com a descoberta das ruínas de Herculano e Pompeia (1709), advogaram-se os princípios da moderação, equilíbrio e harmonia oriundos dos ideais classicistas, contrapondo-se aos excessos dos interiores Barroco e Rococó. Na França desenvolveu-se os estilos Luís XVI e Império, na Suécia, o estilo Gustaviano, assim como na Alemanha e Áustria, o estilo Biedermeir.
Durante o reinado da rainha Vitória, desenvolveu-se um estilo eclético (século XIX ao XX) que marcou de sobremaneira os interiores britânicos e americanos. A realidade é que não se trata propriamente de um estilo, mas de um conjunto de tendências que caracterizam o gosto, os hábitos, as necessidades de uma classe burguesa em ascensão. Os ambientes compunham-se em uma reunião dos mais diversos estilos decorativos, que podiam resultar em uma total falta de unidade e orientação, assim como podiam propiciar espaços equilibrados e harmônicos. O início do século XIX vai se caracterizar pela troca do modelo de produção, do artesanal para o industrial, possibilitando a mais pessoas o acesso aos bens de consumo, sendo assim, o estilo eclético vai se disseminar não somente mais pelas classes dominantes, mas também pelos demais setores da população. O estilo eclético foi uma pausa para rever-se o passado, de forma assimilar as suas vicissitudes, no intento de uma renovação estética.
Enquanto no século XIX se sucedem e se sobrepõem os estilos com inspiração neoclássica, configurando ambientes rigidamente formais, bem compostos e proporcionados, o século XX procurará em seus primórdios novas propostas estéticas. O Art Nouveau (final do século XIX, início do século XX) vem de encontro a esta renovação estética, sendo um estilo que busca romper com os cânones classicistas utilizados durante o século XVIII e XIX, assim como o mélange estilístico do século XIX. Nesse momento, existe a revalorização do trabalho artesanal, sendo a natureza a sua fonte de inspiração.
A Europa no início do século XX vê-se surpreendida pela Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) que, ao seu término, deixa uma Europa arrasada física e psicologicamente. O movimento Art Deco (1920 – 1940) desenvolve-se contrapondo este cenário, renovando os valores estéticos do período, levando cor, movimento e alegria para a arquitetura e os interiores de seu período. Procura-se, neste período, aliar-se o conforto ao design, com produção em larga escala, propiciando uma nova proposição formal, mais universalizante, desprovida de vestígios regionais, caracterizando-se pela ortogonalidade de suas linhas, pelas superfícies polidas e desprovidas de aplicação ornamental, que culminaria no Internacional Style (1940 – 1970, tendo como representantes Walter Gropius, Ludwig Meis van der Rohe, Le Corbusier. Os interiores de linhas retas e cores sóbrias, com ar industrializado, foram introduzindo nos espaços internos da arquitetura uma limpeza formal, um ar cético, que rompe definitivamente com a estética de um passado estilístico enaltecido muitas vezes pelo exagero, pelo excesso do ornamento.
Durante o século XX, o design de interiores sofreu a influência de outros estilos compositivos, correntes e movimentos, como o High-tec, o pós-modernismo, o desconstrutivismo que, de uma forma ou outra, constroem a contemporaneidade, e novas promessas de felicidade para o ser humano; os estilos acompanham as necessidades físicas e psicológicas das sociedades que os produziram.
Parte da história da vida das pessoas está ‘escrita’ em suas casas, como verdadeiros hieróglifos a serem desvendados pelas pessoas que, com estas, compartilham os seus espaços; a opção que se faz na seleção dos materiais de revestimentos, iluminação, mobiliário, quadros e demais elementos compositivos do espaço e pode servir de ferramentas para que se possa imprimir no espaço a personalidade de quem o concebeu. Como bem coloca o analista junguiano James Hillman (1926, p.43): “Existe uma relação entre os nossos hábitos e habitações, […] entre o interior interno de nossas vidas e o interior dentro dos lugares onde vivemos”, desta forma, pode-se, através do estudo mais aprofundado da decoração do lar, fazer uma leitura da história de seus ocupantes, de seus hábitos e de sua personalidade (KRON,1977).
Desde o início da civilização o ser humano possui a necessidade de imprimir a sua marca no espaço onde habita; nas cavernas de Lauxcaux pode-se observar o homem, em seu primórdio civilizatório, buscando contar a sua história, imprimir sua marca e demarcar seu território através das pinturas parietais das cavernas, e a cada caverna que se adentra, pode-se deslumbrar novas cenas, novos motivos, nunca repetitivos, pois desde sempre o homem sentiu a necessidade de diferenciar-se dos demais, de personificar o seu espaço territorial, e de comunicar ao seu grupo social o seu território e a sua posição perante o mundo. Para estabelecer esta comunicação, o homem se utiliza de símbolos que, no design de interiores, os são concebidos pelas ferramentas do designer de interiores, que são espaço, luz, cor, linha, volume e textura, que irão delinear os estilos decorativos, com suas cores e revestimentos, mobiliários, tapetes e acessórios. Para que possam decodificar estes símbolos que constroem os interiores da arquitetura, deve-se considerar o espaço geográfico, os hábitos e o tempo cronológico do espaço a ser analisado.
Uma casa não é um lar, é um objeto arquitetônico, inanimado, destinado à habitação do ser humano, que somente após um processo etológico de domínio territorial efetuado por seus ocupantes é que se transforma em um lar; a este processo denominamos decoração, decorar é dar um significado maior do que simples abrigo, é tornar público o privado modo de ser de cada indivíduo; é apropriar-se do espaço, submetendo-o aos desígnios de quem o constitui, refletindo tal qual um espelho a imagem de quem o habita. É transformar o abrigo em um lar: “A house is not a home”.
Na palavra lar reúne-se o significado de casa e família, de moradia e abrigo, de propriedade e afeição (RYBCZYNSKI, 1986), através da interface do homem com o objeto arquitetônico que se pode analisar o aspecto psicológico da casa. Aspectos estes que são fragmentos a compor um grande vitraux, em que a reunião das partes fragmentadas constrói os interiores da arquitetura, espelhando a personalidade de quem os habita. Na concepção do espaço deve-se levar em contar a ‘complexa condição que integra memórias e imagens, desejos e sentimentos, o passado e o presente; o lugar dos rituais e ritmos pessoais de todos os dias de nossas vidas’ (Pallasmaa.2009,p.37). Desta forma, cada indivíduo possui uma forma de imprimir sua marca no espaço onde habita, revelando sua personalidade e seus aspectos emocionais através da decoração de seu lar.
Segundo a psicóloga Lúcia Rosemberg (1990), não existe agressão maior do que impedir alguém de criar a imagem que identifica, personifica o lugar de sua moradia, de delimitar o seu território. Neste sentido, pode ser tirânico quando um profissional do design de interiores define para o seu cliente um ambiente no estilo minimalista, onde a estética delimita a inclusão de novos móveis, quadros, porta-retratos. Onde o discurso do morador, expresso em sua casa, se limita a um determinado período de sua vida, onde a linguagem não possui mais verbos para expressar os seus novos desejos e sentimentos (BOTTON,2006). Até os homeless, em seus abrigos provisórios, acabam por identificar a sua habitação de forma a comunicar sua posição perante o mundo. No livro intitulado ‘Da Bauhaus ao nosso caos’, Tom Wolfe (1991) descreve a profunda insatisfação dos operários franceses com os apartamentos funcionais do conjunto operariado em Pessac, projetado por Le Corbusier, por serem extremamente cúbicos e assépticos, não correspondendo à imagem que possuíam de um lar.
Os profissionais da construção civil – construtores, arquitetos, engenheiros, decoradores – têm que entender que a casa é mais do que uma expressão arquitetônica, ela traz noções psicológicas, psicoanalíticas e sociológicas do meio que a produziu, pois como bem coloca Gaston Bachelard (2009,58): ‘a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo’. ‘A casa é identidade, impressão digital. Se não for assim, vira cenário, não vira lar. Não é morada, é moradia’ (Rosenberg, 1990, p.87).
A casa, tal qual o ser humano, possui um ciclo de vida, ela nasce, cresce e morre. O nascer de uma casa é quando se concebe a sua primeira montagem, quase sempre tudo novo, de imaculada beleza; mas ao longo dos anos, vários fatores tornam obsoletos o velho programa arquitetônico e a concepção compositiva de seus espaços, tal qual o nascimento de uma nova criança, hospedagem de pais idosos, necessidade de espaço para trabalhar em casa, ascensão ou declínio social, problemas com o encanamento, dentre outros fatores que acabam a alterar layout, materiais de revestimentos, mobiliário, iluminação e outros elementos que compõem a decoração do lar; eis o momento que se faz necessário readequar-se e repaginar-se os interiores aos novos hábitos, às novas necessidades socioeconômica, espaciais dos seus usuários. Desta forma, fica mais fácil de compreender o que diz Rosemberg (1990, p.89), ‘A primeira ideia é não pretender que tudo esteja pronto para depois morar. Se for habitada, seus hábitos também a habitarão, mas eles não chegam antes de você. É no exercício de morar que ela se apronta, conforme os hábitos dos moradores’.
Apesar de ser um imóvel, a casa não é estática. Ela muda conforme a alma de seus moradores, acompanhando as suas transformações, transformações estas que possibilitam rever-se e reciclar valores enrijecidos por velhos hábitos. O profissional do design de interiores, ao entrevistar os seus clientes, precisa estar atento para que a repaginação do espaço não seja meramente superficial, pois é uma oportunidade de renovação interior de seus ocupantes, de rever-lhes o passado, de refutar tudo aquilo que não mais lhes diz respeito e preservar a memória boa de suas próprias histórias, alicerçando um futuro melhor para estes. É difícil de avaliar se as pessoas reformam as suas casas por uma necessidade interior de renovação, de mudança; ou se é a renovação interior destas que fomenta a reforma do imóvel.
Casas que não mudam há muitos anos refletem a rigidez de caráter de seus ocupantes, mas a mudança constante pode revelar a fragilidade emocional destes; como diz o decorador Germano Mariutti: entendo o cigano que leva a casa nas costas, mas não entendo mudar a decoração a cada seis meses […] a casa tem que ser durável e estável.
Estabilidade esta que pode e deve ser questionada conforme a vida se processa, pois reestruturar a casa, esvaziar gavetas, limpar porões, desobstruir os sótãos, é possibilitar a manifestação do vazio, e o vazio é o único lugar onde as coisas podem acontecer. A reforma e a repaginação permitem uma requalificação do espaço, de modo que este possa melhor atender as novas solicitudes de seus ocupantes, promovendo conforto físico e psicológico mais adequado, assim como expressar o momento presente dos usuários, os seus novos hábitos, os seus novos territórios.
Desde a Pré-história o homem demarca instintivamente o seu território para criar a noção de propriedade; ao imprimir as suas mãos sobre as superfícies rochosas das cavernas, ele objetivava comunicar que aquele espaço já estava ocupado; enquanto as pinturas parietais comunicavam seus anseios, medos, e como viam o mundo. Buscavam registrar as imagens que lhes eram importantes de serem lembradas, similarmente às fotos nos porta-retratos que encimam os móveis das residências.
Desta forma, desde os primórdios civilizatórios, o homem delimita o seu território através da composição dos seus espaços, espaços estes que delineiam a personalidade de quem os ocupam. A casa pode ser entendida como extensão da personalidade de seus ocupantes; tanto que a primeira medida que os portugueses tomaram com a expulsão dos holandeses do Brasil, em 1654, foi a demolição do Palácio Friburgo, erigido para a moradia do conde Johan Maurits van Nassau-Siegen (Maurício de Nassau), que governou o Brasil holandês (Pernambuco, Sergipe e Maranhão) no século XVII por sete anos (1637 – 1644), para apagar junto à população a imagem deste brilhante governante.
A casa, pois, acaba por revelar a persona de seus ocupantes, possui em seus interiores uma forma de comunicação não verbal que faz com que esta represente os seus proprietários. Como bem coloca Sig Bergamin (2009,78): ‘cada casa tem sua própria voz; é uma tolice não tentar ouvi-la’. Ouvir esta voz significa decodificar, através dos cinco sentidos, a linguagem dos materiais, dos objetos, e demais elementos que possam vir a compor uma casa, de modo a revelar a personalidade de seus usuários, sua história, hábitos e costumes.
Uma casa iluminada, colorida, com cortinas leves e espaços interligados, é um indicativo de que o usuário que a habita é extrovertido e esfuziante; enquanto uma casa entulhada de objetos, com pesadas cortinas e compartimentos segmentados, revela uma personalidade mais rígida de seu ocupante. Tecidos rústicos revelam despretensão enquanto tecidos brilhantes e suaves podem revelar prepotência ou arrogância. Mas nada pode ser avaliado em separado, pois cada elemento decorativo é uma peça de um quebra cabeça que compõe o cenário que constrói a persona de seu usuário.
Cada espaço que compõe a casa possui um significado psicológico. A sala fala das relações sociais, é o local da casa onde se faz a transição entre o interno e o externo, onde, ao compor-se este espaço, se constrói as máscaras sociais na intenção de revelar quem se deseja ser. A sala de jantar é um local formal, onde se busca a sociabilização dos convidados com os proprietários, onde se procura mostrar ou revela-se a educação dos seus anfitriões. A cozinha é considerada o útero da casa, onde se encontra a essência da família, a área do afeto, do gostoso, onde se nutre a matéria. Fala do criativo, das transformações profundas. O quarto refere-se à intimidade inconsciente, à sexualidade, aos prazeres, ao compartilhamento da intimidade. O banheiro é o espaço onde o indivíduo encontra-se consigo mesmo, onde as máscaras sociais se desfazem, tornando-o mais vulnerável. O lugar onde a persona deixa espaço para o eu verdadeiro, que se mira no espelho e muitas vezes não se reconhece.
O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, que interpretava os símbolos contidos nas mensagens oníricas contidas nos sonhos, também via na casa um símbolo que poderia revelar a estrutura e a identidade de uma pessoa. A casa em chamas, segundo Jung (2002), revela sofrimentos ou paixões que consomem o ser humano: raiva, ódio, ciúmes, inveja. Se a ação do sonho se passa na frente da moradia, o inconsciente está tratando de aspectos sociais. Se acontecer nos fundos, põe em foco assuntos mais íntimos. Descer escadas ou elevadores é o caminho do inconsciente, subir é o caminho da espiritualidade e razão. Já portas indicam cruzamento de umbrais, entradas em novas realidades.
O útero da arquitetura é delineado pelo design de interiores, que a qualifica, lhe cria sua persona, a sua atmosfera. Mario Praz denomina esta atmosfera de stimmung, que vem a ser a ‘[…] característica de interiores menos relacionada à funcionalidade do que à maneira como o aposento comunica a personalidade de seu dono – o modo como reflete a sua alma […]’ (RYBCZYNSKI,1986, p.55). O stimmung é a percepção sensorial do espaço, é a sensação de que o espaço deixa registrado na alma das pessoas que por ele passaram, é o resultado da concepção espacial.
Para a concepção do espaço o designer se utiliza das seguintes ferramentas: luz, cor, linha, volume e textura. Na entrevista com o cliente, ou seja, no briefing, será determinada a forma pela qual o profissional irá se utilizar das ferramentas, resultando no estilo que será adotado. Sendo assim, o estilo é a maneira pela qual o profissional se utiliza destas ferramentas; no projeto de design de interiores o profissional apresenta as ferramentas escolhidas, sendo que, na perspectiva, apresenta linhas, volumes e cores; no concept board apresenta linhas e volumes e, no painel de coordenação, texturas e cores. O stimmung do espaço é a resultante do uso das ferramentas.
Para a concepção de um projeto de design de interiores, o designer deve considerar primeiramente três aspectos: os psicológicos, os técnicos e os estéticos. Os psicológicos são os aspectos subjetivos do projeto que, quando aplicados de forma correta, auxiliam na perfeita concepção do stimmung do espaço, possibilitando a dissimulação do espaço, tornando o ambiente mais alegre ou triste, mais romântico ou mais frio, simples ou sofisticado, masculino ou feminino, ou seja, traduz no ambiente a ‘atmosfera’ desejada. Os aspectos técnicos objetivam o conforto físico do usuário, são mais mensuráveis, pois se baseiam na ciência da ergonomia que abrange: a antropometria, a circulação funcional, a acústica, a luminotécnica e o conforto térmico. O conforto visual é propiciado pelos aspectos estéticos que se utilizam das luzes, cores, linhas, volumes e texturas para delinearem os princípios do design, que são: o equilíbrio, o ritmo, a harmonia, a unidade, a escala, a proporção, o contraste, a variedade, assim como a ênfase e o centro de interesse.
No desenvolvimento do projeto de design de interiores o profissional procurará justapor as suas ferramentas no intento de atingir o stimmung desejado para satisfazer os aspectos psicológicos do espaço, assim como os técnicos e os estéticos; de modo que a composição resulte em espaço equilibrado e harmônico. Ao compor-se um espaço, o profissional do design de interior está criando uma imagem, imagem esta que se decodificada por seus usuários lhes transmitirá mensagens subliminares, que aguçaram os sentidos dos usuários para transmitir o stimmung do espaço. Stimmung todo o espaço possui, mas o designer possui ferramentas para construí-lo ou remodelá-lo. Desta forma, o entendimento destas ferramentas se faz necessário para que melhor se possa fazer uso delas.
A luz é determinante na concepção do stimmung do espaço, sem ela não existe cor, linha, forma ou textura (SILVA,2002). A luz estipula o cerimonial, define as formas, projeta as sombras, cria os contrastes, e comunica o stimmung do espaço. Luz direta transmite higiene, alegria e jovialidade; a luz indireta transmite introspecção, sofisticação, romantismo e afetividade; a luz branca transmite precisão enquanto sob a luz amarela os alimentos parecerão mais salubres. O up light amplia o pé-direito, o down light, o reduz; amplia-se o espaço aumentando a intensidade do sistema luminotécnico, enquanto a sua redução torna o espaço mais aconchegante e proporcionalmente menor.
As cores possuem o seu próprio vocabulário que em muito contribuem para a construção do stimmung do espaço, assim como para a comunicação com os seus usuários (FARINA,2010). As cores quentes transmitem sensações de calor, alegria, movimento, adequando-se bem aos espaços mais sociais; estas coordenam bem com madeiras escuras e elementos dourados. Para as áreas íntimas, as cores frias se adéquam bem por transmitirem frescor, intimidade, introspecção; estas coordenam bem com madeiras claras e cromados em geral.
Cada cor possui um significado, e gera no espaço uma determinada sensação psíquica e física em seu usuário. O Vermelho é a cor do domínio territorial, da agressividade, da sexualidade; acelera as batidas cardíacas elevando a pressão arterial; aumenta a apetência por potencializar a sensibilidade das papilas gustativas, é uma cor que influencia o sentido do olfato.
Para que o espaço transmita a sensação de jovialidade, fartura e alegria, pode-se utilizar o amarelo, que leva luminosidade ao ambiente; por ser a cor mais próxima do branco, o amplia e o clareia; similarmente, ao vermelho e ao laranja aumenta a apetência de quem por estas cores estiverem sendo influenciadas. Laranja transmite energia, de forma que deve ser utilizado com moderação por propiciar a sensação de estafa visual, quando utilizado em grandes áreas.
Paz, tranquilidade, equilíbrio e frescor são os significados da cor azul, transmitindo ao inconsciente das pessoas repouso; por ser a cor mais repousante do círculo cromático, pode induzir à melancolia e, consequentemente, à depressão. O corpo para repousar precisa que a temperatura do cérebro seja rebaixada de um a dois graus. O azul e o verde podem contribuir para isto. O verde tem como simbologia a natureza, é a cor da concentração, fortalece a musculatura.
Os espaços onde que se deseja a transmutação espiritual pode ser utilizado o violeta, que nos remete ao etéreo, ao que não é terrestre. É a cor do luxo, da realeza. Sob influência da cor violeta, o organismo humano aumenta a produção de leucócitos brancos, que combatem as infecções.
Pesar, melancolia e resistência são simbologias atribuídas ao marrom; assim como sempre foi a cor da pobreza. Antagonicamente, o marrom dá segurança psíquica às pessoas, assim como o organismo humano produz sob a sua influência um neurotransmissor denominado serotonina que conduz o corpo ao sono. Ambientes masculinos pedem o preto, que simboliza o mistério, a negação, a tristeza, a depressão. O branco vibra como o vermelho, gerando cansaço visual quando usado de sua forma pura; tem por simbologia a assepsia, a paz, a pureza; é a cor do altíssimo luxo.
As diversas combinações de cores possibilitam a formatação de diversos esquemas de coordenação que, com as demais ferramentas de composição, delineiam os stimmungs dos espaços. Os esquemas neutros, que se utilizam do branco, bege, marrom e preto, propiciam a sensação de elegância, repouso e frescor. A utilização de uma única cor caracteriza um esquema monocromático de composição, podendo gerar no espaço diversas sensações, como a de repouso ou movimento, refrescância ou aquecimento, alegria ou tristeza, dependendo da cor utilizada.
Para se conferir ao espaço uma atmosfera mais jovial e descontraída, pode-se utilizar um esquema de composição policromático. O esquema policromático análogo utiliza-se de uma cor e sua adjacente no círculo cromático, gera contrastes mais delicados e resulta em uma composição sempre fria ou quente. Para gerar movimento no espaço, pode-se utilizar do esquema policromático complementar, compondo cores diametralmente opostas no círculo cromático e gerando no espaço um equilíbrio cromático entre as cores quentes e frias para equilibrá-lo; gera um contraste forte e muito interessante.
As cores ainda podem contribuir para a dissimulação espacial. As cores claras ampliam visualmente o ambiente enquanto as escuras reduzem visualmente o ambiente. Para aumentar visualmente o pé-direito, pinte o forro de uma cor mais clara, para rebaixá-lo, utiliza-se cor mais escura.
A linha constrói o volume que juntos contribuem para a concepção do stimmung do espaço. Linhas e volumes orgânicos levam feminilidade ao espaço, assim como dão a sensação de continuidade para este. Linhas retas e formas quadradas geram no espaço um stimmung de estabilidade e seriedade, formas triangulares e linhas tornam o espaço dinâmico.
As texturas classificam-se em duas modalidades: as visuais e as tácteis; as visuais são aquelas que estimulam o sentido da visão, mas não o tacto. São as que podemos chamar trompe l’oeil, ou seja, as que enganam os olhos. As texturas tácteis são aquelas que estimulam o sentido da visão e do tacto simultaneamente. O contraste de texturas gera um ponto focal no espaço, elege-se uma textura, e se utiliza de uma segunda para o contraste. Superfícies lisa, brilhante, refletem mais a luz, fazendo com que a cor pareça mais forte e viva; opostamente, a superfície rugosa ou fosca absorve mais a luz de forma a amenizar as cores utilizadas sobre elas. Para espaços que necessitam de uma melhor qualidade para a reprodução do som, como é o caso do home theater devem utilizar-se texturas mais rugosas e porosas que melhoram a absorção do som. Na construção do stimmung, as texturas lisas contribuem para dar ao espaço um ar de assepsia e tecnologia; enquanto as texturas rugosas transmitem introspecção.
Pode-se concluir que, através da análise histórica dos espaços interiores da arquitetura, se permite avaliar as condicionantes sociais, econômicas e culturais das sociedades que os produziram. Que o design de interiores acaba por refletir os medos e os anseios dos seres humanos, construindo stimmungs que acabam por serem elementos definidores dos estilos que caracterizaram determinados períodos históricos. Os espaços residenciais, similarmente aos espaços históricos, são reflexos da persona de quem os construiu; e muito pode contribuir para a felicidade e infelicidade destes, quando da construção do stimmungs que lhes serão próprios. Que para construir-se o stimmung do espaço, o designer se utiliza das seguintes ferramentas: luz, cor, linha, volume e textura que constroem o útero da arquitetura.
Glaucus Cianciardi, graduado e mestre em Arquitetura e docente no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (FEBASP).
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